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Isabela Boscov

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Apocalypto

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Por Isabela Boscov Atualizado em 11 jan 2017, 15h58 - Publicado em 24 jan 2007, 15h19
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  • Apocalíptico e desintegrado

    Com seu épico maia Apocalypto, Mel Gibson mostra que sabe filmar – mas não controlar as suas obsessões

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    Em Apocalypto, o primeiro – e provavelmente o último – épico maia da história do cinema, um vilarejo de inocentes é arrasado por uma tribo mais avançada. Mulheres são violentadas, velhos são assassinados, crianças são largadas à própria sorte. Os homens são conduzidos sob tortura até um centro de devassidão: um conjunto de pirâmides, no meio da selva, onde um sacerdote arranca o coração de escravo atrás de escravo, jogando as cabeças cortadas escadaria abaixo e alimentando o êxtase da multidão. Por uma casualidade, ou por intervenção divina, um dos homens marcados para o sacrifício, o jovem Jaguar Paw (ou “Pata de Jaguar”), é poupado no último instante. Durante sua fuga, ele cumprirá, sem saber, os vários passos de uma profecia que anuncia a derrota de seus algozes para outra civilização. Mais, até: Jaguar Paw é que os levará ao encontro desse novo elemento. Apocalypto é parte reconstituição da Mesoamérica do século XV, apoiada em fontes até respeitáveis, e parte fruto da imaginação desabrida de Mel Gibson, seu autor e realizador. Uma salada, enfim. Entretanto, visto pelo prisma das obsessões cada vez mais notórias de Gibson, o filme é de uma coerência inabalável. Da mesma forma que Coração Valente e A Paixão de Cristo, esta aventura se ocupa acima de tudo das infinitas possibilidades de mutilação, dor e penitência contidas no corpo humano. Por extensão, ela trata também dos significados que o martírio tem para o catolicismo ultra-ortodoxo de Gibson: o terror do pecado (aqui, lato sensu) e a ânsia pela expiação.

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    Em julho passado, num acesso muito público de anti-semitismo, Mel Gibson foi parado em Malibu sob suspeita de dirigir embriagado. “Malditos judeus. Vocês são responsáveis por todas as guerras no mundo”, berrou ele para o policial, segundo testemunhos – os quais imediatamente começaram a ricochetear na internet. Gibson, que tem dificuldades conhecidas com o álcool, a homofobia e o relacionamento em pé de igualdade entre homens e mulheres, não é um novato em crises de imagem. Mas o episódio de Malibu superou qualquer outro de sua experiência, colocando-o no topo da lista de indesejáveis de Hollywood, da qual nem suas profusas desculpas e pedidos de “ajuda” têm se mostrado capazes de removê-lo. De certa forma, porém, a débâcle anti-semita de Gibson é o seguimento lógico para a polêmica de A Paixão de Cristo e a publicidade adequada para Apocalypto. Pelo que se pode depreender do novo filme, o estado de graça, para o diretor, é algo ainda mais frágil do que para a maioria das pessoas – e a queda em desgraça, não só mais completa como também mais prazerosa. Na abertura, que mostra o éden em que vivem Jaguar Paw (interpretado pelo índio americano Rudy Youngblood) e seu clã, o filme titubeia e não engrena; assim que se inicia a via-crúcis do protagonista, Apocalypto cresce e se desenvolve, como narrativa e como demonstração de apuro técnico. É de dar medo pensar que a mente de Gibson possa conter pesadelos tão ornamentados como o da cidade dos sacrifícios, em que até o figurino provoca mal-estar. E, ao mesmo tempo, causa certa admiração que o diretor não tenha pudor em conjurar assim suas visões supersticiosas do paganismo.

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    É provável que Gibson preferisse ter chamado atenção não para suas obsessões, mas para os cuidados que dispensou a Apocalypto – as locações no sul do México, os atores e figurantes recrutados entre a população indígena local, os diálogos em maia yucatec (idioma ainda usado por cerca de 700.000 habitantes da América Central e parente próximo do maia que, acredita-se, era falado no período pré-colombiano), os detalhes pesquisados em estudos como o 1491, de Charles C. Mann, e em relatos de missionários espanhóis que desembarcaram na região junto com os primeiros descobridores. Numa tentativa canhestra de atrair para seu filme o favor dos liberais de Hollywood, que desde A Paixão de Cristo lhe deram as costas, Gibson chegou a declarar que a política de incitamento ao pânico praticada pela tribo dominante de Apocalypto “faz lembrar a de George W. Bush e seu pessoal”. Ainda que o paralelo fosse capaz de se sustentar, não é esse o ponto. A única coisa que está em jogo no filme, e que dá liga a ele, é a natureza patológica da criatividade de Gibson. Assistindo a Apocalypto, freqüentemente se tem vontade de desviar os olhos da tela – não apenas em razão da violência extrema, mas por causa da sensação de que o diretor está expondo algo íntimo demais para ser dividido com completos estranhos. Gibson talvez não seja um sádico, como se julgava, mas um autêntico masoquista.

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    Isabela Boscov
    Publicado originalmente na revista VEJA no dia 24/01/2007
    Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
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    © Abril Comunicações S.A., 2007


    APOCALYPTO
    Estados Unidos, 2016
    Direção: Mel Gibson
    Com Rudy Youngblood, Dália Hernandez, Jonathan Brewer, Morris Birdyellowhead, Espiridion Acosta Cache

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