Então hoje é Dia das Crianças. Quem se importa com as criancinhas?, perguntei no último post. Pois hoje vou me contradizer: nós nos preocupamos demais com elas. A segunda pessoa do plural, aqui, diz respeito a uma geração de pais tardios que vivem em permanente angústia. Mais ou menos assim: a profissão do sujeito exige que ele trabalhe no Dia das Crianças; seus filhos, embora um tanto decepcionados, sabem disso, e entendem que o trabalho dos pais lhes garante roupa, comida, escola, gato de estimação e X-Box One, mas nada disso serve para mitigar a aflição do pobre pai trabalhador, que fatalmente acrescentará as horas gastas na redação deste texto à inesgotável conta dos dias que imagina dever aos próprios filhos.
Pois no Dia das Crianças resolvi oferecer alívio aos pais – ainda que seja o alívio dúbio e provisório de um bom choque de realidade. Não se esforce tanto, pai pós-moderno. Não adianta: no final, você vai causar algum estrago a seu filho. Quer você se apegue à educação tradicional da boa família cristã, quer empregue a mais descolada e libertária pedagogia moderninha, não há como escapar: seu filho guardará na vida adulta algum surdo ressentimento contra você. Quem nos traz essa verdade em versos antológicos é o poeta inglês Philip Larkin. Reproduzo abaixo o poema original e, em seguida, a primorosa tradução que o amigo Nelson Ascher cedeu ao blog. Tire as crianças da sala antes da leitura, pois obviamente não é poema recomendável para os pequenos (e não só porque tem palavrão).
THIS BE THE VERSE
They fuck you up, your mum and dad.
They may not mean to, but they do.
They fill you with the faults they had
And add some extra, just for you.
But they were fucked up in their turn
By fools in old-style hats and coats,
Who half the time were soppy-stern
And half at one another’s throats.
Man hands on misery to man.
It deepens like a coastal shelf.
Get out as early as you can,
And don’t have any kids yourself.
ESTE SEJA O POEMA
Teu pai e tua mãe fodem contigo
Que não o queiram, tanto faz.
Passam-te todo podre antigo,
além de uns novos, especiais.
Mas, de cartola e fraque outrora,
fodera-os já do mesmo modo,
gente ora austero-piegas, ora
se engalfinhando cega de ódio.
Miséria é o que legamos — fossas
no oceano cada vez mais fundo.
Dá o fora, pois, tão logo possas
nem ponhas filho algum no mundo.
Os versos finais talvez façam ecoar, no coração do leitor brasileiro, as palavras finais do Defunto Autor. Convém evitar, porém, a tentação fácil de responder a Larkin com o poema de um famoso Autor Defunto? “Filhos… Filhos? / Melhor não tê-los!/ Mas se não os temos / Como sabê-lo?”.
Larkin sabia.
***
David Bowie, pai de Duncan e Lexi, recitou This Be the Verse em uma entrevista de 2002, na BBC. É interessante acompanhar como Bowie chegou até Larkin (o trecho começa por volta de 10 minutos no vídeo abaixo). Michael Parkinson, o entrevistador, pergunta pelas raízes da rebeldia do cantor e compositor. Bowie diz que, na verdade, nunca fora rebelde. Não contra o mundo, pelo menos: sua rebeldia voltava-se apenas contra seus pais. “O que há de errado com papai e mamãe?”, pergunta Parkinson – e é então que entra o poema:
Em outros momentos da conversa, Bowie rememora a infância, abre o jogo sobre o uso de drogas, conta anedotas dos tempos em que encarnava Ziggy Stardust no palco, e até se declara um pai “vitoriano”, que não troca fraldas. No entanto, subsiste uma notável reserva no modo como ele fala da vida privada. Ficamos sem saber exatamente que diferenças ele tinha com seus pais.
É muito inteligente o modo como ele usa os versos de Larkin para traçar uma linha, como se dissesse “daqui não passamos; falemos da experiência universal descrita pelo poeta, mas não da minha relação particular com meus pais”. O poema, objeto inútil, revela aqui uma insuspeita aplicação prática: os versos que desvelam a intimidade de todos nós, pais e filhos, serviram para que Bowie resguardasse sua intimidade particular.