Último Mês: Veja por apenas 4,00/mês

Intervenção

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Crítica da cultura e cultura da crítica. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
Continua após publicidade

Cadê provocação, Caê?

Quanto mais Caetano Veloso busca a antiga relevância no debate político, mais parece datado. O músico baiano padece da Síndrome do Vanguardista Ultrapassado

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 jul 2020, 20h51 - Publicado em 2 jun 2017, 19h42
  • Seguir materia Seguindo materia
  • Não tenho competência matemática para avaliar a consistência da tal teoria dos “seis graus de separação”. Nesta semana, no entanto, encontrei uma forte evidência de que a coisa faz sentido: uma amiga de Facebook compartilhou meu post anterior, e uma amiga dessa amiga partiu em defesa de Mallu Magalhães no espaço de comentários. Apenas dois graus me separam de uma fã da Mallu! Sendo assim, tudo é possível: em meros seis passos eu talvez chegue a Charlize Theron, que eu gostaria de ver mais de perto, ou ao Dalai Lama e ao papa, dos quais quero distância.

    Mas deixemos Charlize e os dois santos homens para lá: o que importa aqui é a injuriada fã de Mallu Magalhães. Pois ela disse que meu texto era “provocativo”, e  fez questão de afirmar que não se tratava de elogio. Na concepção da moça, o sujeito que provoca na definição que o dicionário dá ao verbo em sua regência intransitiva: “fazer perder a calma; irritar; perturbar” – tem uma incorrigível falha moral, ou talvez sofra de algum distúrbio psiquiátrico que exija internação compulsória. É, em suma, um canalha (para usar a ofensa predileta de Nelson Rodrigues, grande provocador). Eu quase diria que essa recusa a toda forma de provocação é muito coerente com quem gosta da música de Mallu Magalhães. Não quero, porém, pegar só no pezinho sambista da cantora de Você Não Presta. O problema é maior do que Mallu: há muito tempo que falta provocação à música brasileira em geral. Preguiçosamente deitada sobre a fama esplêndida que ganhou nos tempos da ditadura, a chamada MPB já não faz perder a calma, não irrita, não perturba.

    Mais uma provocação irresponsável, dirá a alma devota que adora a entidade conhecida como Chico&Caetano. Pois remeto o bom leitor a um depoimento recente de uma das pessoas da Santíssima Dualidade. Caetano Veloso falou ao Estadão sobre Belchior. Como é costumeiro, o compositor cearense recém-falecido, suposto tema da conversa, tornou-se pretexto para Caetano falar de Caetano. Belchior ironizou, em Apenas um Rapaz Latino-Americano, um verso de Caetano, lá do tempo da Tropicália (“tudo é divino maravilhoso”), e, a julgar pelo que diz Caetano, esta é uma passagem central e definidora na obra do autor de Como Nossos Pais. Talvez seja mesmo, mas me estranha que Caetano tenha sentido a necessidade de responder a essa ironia de modo ao mesmo tempo tão tardio (cerca de 40 anos depois  música de Belchior) e tão precoce (poucos dias depois da morte de Belchior). Na festa imodesta da MPB, o músico que ironiza outro músico será um cadáver estranho. O próprio Caetano admite esse caráter plácido, pacífico da MPB: “O tropicalismo se opôs à bossa nova louvando João, Jobim e Lyra. A bossa nova se opôs à bossa velha louvando Caymmi, Ary e Bide&Marçal. O pessoal do Ceará queria opor-se mesmo”. Talvez por isso a MPB tenha se acomodado tão confortavelmente em seu cálido nicho institucional.

    É curioso que, na voga recente de atacar a classe média, o gosto por MPB não seja citado, ao lado do “fascismo” e do “racismo estrutural”, como um atributo muito próprio dessa classe. Não de toda a classe média, claro, mas de certo estrato intelectualizado, talvez já um tanto avançado em idade, que encontra na música de Chico&Caetano uma espécie de emblema geracional. Grosso modo, são as “pessoas da sala de jantar” que a Tropicália desprezava. Ouvir MPB, para elas, é uma marca de bom gosto. E, claro, uma marca de classe: os outros ouvem sertanejo, ou Wesley Safadão, mas as pessoas esclarecidas e progressistas, entre um “Fora Temer” e um “Diretas Já”, assobiam o Leãozinho.
    Digo isso sem qualquer provocação, como quem constata um fato: a MPB converteu-se em uma variedade tipicamente brasileira de filistinismo.

    ***

    Continua após a publicidade

    Na minha crítica a Aquarius (neste post, depois da Sônia Braga de maiô), falei do mito fundamental da esquerda brasileira a resistência. Esse velho fantasma segue assombrando o meio artístico brasileiro. Veja a foto de grupo mais lá em cima: atores e músicos reúnem-se no apartamento carioca de Paula Lavigne, mulher de Caetano, para discutir o futuro do país e tramar a queda de Michel Temer. Em toda reunião dominical de família e em toda mesa de boteco do Brasil, fala-se dos mesmos temas debatidos no convescote chique, e é provável que na maioria dessas rodas se chegue à mesma conclusão: o governo é insustentável. Mas só o pessoal das artes achou que um encontro desses merecia foto, e que a foto merecia ampla divulgação na sempre tão criticada “mídia”. O senso de missão com que eles se apresentam ao público é muito velho, e já ficou ridículo. (Talvez Temer anuncie neste fim de semana que já não tem mais alternativa a não ser a renúncia, pois a turma da Paula Lavigne assim exigiu, e então ridículo será o autor do presente texto. Mas não creio que isso vá ocorrer.)

    A posição de Caetano Veloso na foto tem lá seu significado: sentado, ao centro. Como um patriarca.

     

    ***

     

    Continua após a publicidade
    Caetano Veloso
    Caetano Veloso durante seu show em ato pelas Diretas Já, na praia de Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro – 28/05/2017 (AgNews/AgNews)

    A Tropicália foi, sim, um movimento provocativo. Tirou a calma da militância esquerdista ortodoxa, que vaiou Caetano no 3o Festival Internacional da Canção, em 1968, e irritou a ditadura, que depois do AI-5 deu uma dura em Caetano e Gil. O Caetano “Odara” que voltou do exílio em Londres ainda perturbaria o povo da direita, que o achava indecente, e o da esquerda, que o considerava alienado. Provocação é o motor da vanguarda, mas não se pode ser vanguarda para sempre. Quase uma instituição, Caetano de vez em quando ainda faz boa música, e basta. Ou deveria bastar: parece haver uma ansiedade pela antiga relevância na forma quase compulsiva com que ele anda sempre  levantando o cartaz do momento, do “fora Temer” ao “mexeu com uma, mexeu com todas”.  Numa dessas tentativas de uptade, ele até fez um aceno para o difuso e confuso movimento que chamam de “nova direita”. Foi no ano passado, quando Intervenção ainda não existia e eu me contentava em incomodar só os amigos de Facebook. Pois hoje encerro com a provocação que escrevi na época:

    Síndrome do Vanguardista Ultrapassado: temos de ser compreensivos com quem padece dessa merencória condição. A SVU (não confundir com SUV, detestado veículo da elite suja de Higienópolis) é uma espécie de Parkinson estético, produzindo tremores das convicções artísticas e políticas. Eis aí Caetano Veloso, o tropicalista, o criador de discos para “entendidos”, o qualquer coisa, o leãozinho, o quereres. Gosto da música dele, mesmo. Da música que o cara já fez: não corro atrás de discos novos. O mais recente está lá no Spotify e eu não ouvi. Pois o baiano insiste em matar o velhote inimigo que morreu ontem. Golpe, fora Temer, a treta toda. A UJS que vaiava no Festival Internacional da Canção agora pira. Os stalinistas que antes achavam a coisa toda muito alienada e colonizada, hoje convertidos em freixistas e haddadetes, estão prontos pra deixar o corpo ficar Odara. Aplaudem. Viva a Vaia? Não mais: Viva o Véio!
    Mas então a
    Folha foi lá descobrir um coxinha do MBL que faz carreira paralela num tal Bonde do Rolé. Parece que o cara falou de uma “direita transante”. (Eu não entendi a novidade: fascista decerto não faz sexo? Esses bolsonaros juniores que concorrem a todos os cargos possíveis acaso nasceram por geração espontânea?) Bastou isso pro desespero bater em Painho: epa, tem algo novo aí! O Bonde do Rolé vai passar e eu vou ficar comendo poeira nos trilhos urbanos. E lá vai o Caetano, na mesma Folha, caetanear, aliterativo: “a direita transante é interessante”.
    A expressão não é dele, certo. Mas a alegria, a alegria com que ele a abraçou! Terá escutado nela uma alusão lisonjeira ao disco londrino
    Transa? (Narciso, afinal, só acha bonito o que é espelho.)
    Transante, derivado do verbo transar! Quando até o pueril “ficar” já caducou nestes dias do rude “pegar”, “transar” é uma brasa, mora?  Nada denuncia tanto a idade quanto uma gíria ultrapassada.

     

    Publicidade
    Publicidade

    Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

    Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

    Veja e Vote.

    A síntese sempre atualizada de tudo que acontece nas Eleições 2024.

    OFERTA
    VEJA E VOTE

    Digital Veja e Vote
    Digital Veja e Vote

    Acesso ilimitado aos sites, apps, edições digitais e acervos de todas as marcas Abril

    1 Mês por 4,00

    Impressa + Digital
    Impressa + Digital

    Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (equivalente a 12,50 por revista)

    a partir de 49,90/mês

    *Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
    *Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a 9,90/mês.

    PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
    Fechar

    Não vá embora sem ler essa matéria!
    Assista um anúncio e leia grátis
    CLIQUE AQUI.