Não tenho competência matemática para avaliar a consistência da tal teoria dos “seis graus de separação”. Nesta semana, no entanto, encontrei uma forte evidência de que a coisa faz sentido: uma amiga de Facebook compartilhou meu post anterior, e uma amiga dessa amiga partiu em defesa de Mallu Magalhães no espaço de comentários. Apenas dois graus me separam de uma fã da Mallu! Sendo assim, tudo é possível: em meros seis passos eu talvez chegue a Charlize Theron, que eu gostaria de ver mais de perto, ou ao Dalai Lama e ao papa, dos quais quero distância.
Mas deixemos Charlize e os dois santos homens para lá: o que importa aqui é a injuriada fã de Mallu Magalhães. Pois ela disse que meu texto era “provocativo”, e fez questão de afirmar que não se tratava de elogio. Na concepção da moça, o sujeito que provoca – na definição que o dicionário dá ao verbo em sua regência intransitiva: “fazer perder a calma; irritar; perturbar” – tem uma incorrigível falha moral, ou talvez sofra de algum distúrbio psiquiátrico que exija internação compulsória. É, em suma, um canalha (para usar a ofensa predileta de Nelson Rodrigues, grande provocador). Eu quase diria que essa recusa a toda forma de provocação é muito coerente com quem gosta da música de Mallu Magalhães. Não quero, porém, pegar só no pezinho sambista da cantora de Você Não Presta. O problema é maior do que Mallu: há muito tempo que falta provocação à música brasileira em geral. Preguiçosamente deitada sobre a fama esplêndida que ganhou nos tempos da ditadura, a chamada MPB já não faz perder a calma, não irrita, não perturba.
Mais uma provocação irresponsável, dirá a alma devota que adora a entidade conhecida como Chico&Caetano. Pois remeto o bom leitor a um depoimento recente de uma das pessoas da Santíssima Dualidade. Caetano Veloso falou ao Estadão sobre Belchior. Como é costumeiro, o compositor cearense recém-falecido, suposto tema da conversa, tornou-se pretexto para Caetano falar de Caetano. Belchior ironizou, em Apenas um Rapaz Latino-Americano, um verso de Caetano, lá do tempo da Tropicália (“tudo é divino maravilhoso”), e, a julgar pelo que diz Caetano, esta é uma passagem central e definidora na obra do autor de Como Nossos Pais. Talvez seja mesmo, mas me estranha que Caetano tenha sentido a necessidade de responder a essa ironia de modo ao mesmo tempo tão tardio (cerca de 40 anos depois música de Belchior) e tão precoce (poucos dias depois da morte de Belchior). Na festa imodesta da MPB, o músico que ironiza outro músico será um cadáver estranho. O próprio Caetano admite esse caráter plácido, pacífico da MPB: “O tropicalismo se opôs à bossa nova louvando João, Jobim e Lyra. A bossa nova se opôs à bossa velha louvando Caymmi, Ary e Bide&Marçal. O pessoal do Ceará queria opor-se mesmo”. Talvez por isso a MPB tenha se acomodado tão confortavelmente em seu cálido nicho institucional.
É curioso que, na voga recente de atacar a classe média, o gosto por MPB não seja citado, ao lado do “fascismo” e do “racismo estrutural”, como um atributo muito próprio dessa classe. Não de toda a classe média, claro, mas de certo estrato intelectualizado, talvez já um tanto avançado em idade, que encontra na música de Chico&Caetano uma espécie de emblema geracional. Grosso modo, são as “pessoas da sala de jantar” que a Tropicália desprezava. Ouvir MPB, para elas, é uma marca de bom gosto. E, claro, uma marca de classe: os outros ouvem sertanejo, ou Wesley Safadão, mas as pessoas esclarecidas e progressistas, entre um “Fora Temer” e um “Diretas Já”, assobiam o Leãozinho.
Digo isso sem qualquer provocação, como quem constata um fato: a MPB converteu-se em uma variedade tipicamente brasileira de filistinismo.
***
Na minha crítica a Aquarius (neste post, depois da Sônia Braga de maiô), falei do mito fundamental da esquerda brasileira – a resistência. Esse velho fantasma segue assombrando o meio artístico brasileiro. Veja a foto de grupo mais lá em cima: atores e músicos reúnem-se no apartamento carioca de Paula Lavigne, mulher de Caetano, para discutir o futuro do país e tramar a queda de Michel Temer. Em toda reunião dominical de família e em toda mesa de boteco do Brasil, fala-se dos mesmos temas debatidos no convescote chique, e é provável que na maioria dessas rodas se chegue à mesma conclusão: o governo é insustentável. Mas só o pessoal das artes achou que um encontro desses merecia foto, e que a foto merecia ampla divulgação na sempre tão criticada “mídia”. O senso de missão com que eles se apresentam ao público é muito velho, e já ficou ridículo. (Talvez Temer anuncie neste fim de semana que já não tem mais alternativa a não ser a renúncia, pois a turma da Paula Lavigne assim exigiu, e então ridículo será o autor do presente texto. Mas não creio que isso vá ocorrer.)
A posição de Caetano Veloso na foto tem lá seu significado: sentado, ao centro. Como um patriarca.
***
A Tropicália foi, sim, um movimento provocativo. Tirou a calma da militância esquerdista ortodoxa, que vaiou Caetano no 3o Festival Internacional da Canção, em 1968, e irritou a ditadura, que depois do AI-5 deu uma dura em Caetano e Gil. O Caetano “Odara” que voltou do exílio em Londres ainda perturbaria o povo da direita, que o achava indecente, e o da esquerda, que o considerava alienado. Provocação é o motor da vanguarda, mas não se pode ser vanguarda para sempre. Quase uma instituição, Caetano de vez em quando ainda faz boa música, e basta. Ou deveria bastar: parece haver uma ansiedade pela antiga relevância na forma quase compulsiva com que ele anda sempre levantando o cartaz do momento, do “fora Temer” ao “mexeu com uma, mexeu com todas”. Numa dessas tentativas de uptade, ele até fez um aceno para o difuso e confuso movimento que chamam de “nova direita”. Foi no ano passado, quando Intervenção ainda não existia e eu me contentava em incomodar só os amigos de Facebook. Pois hoje encerro com a provocação que escrevi na época:
Síndrome do Vanguardista Ultrapassado: temos de ser compreensivos com quem padece dessa merencória condição. A SVU (não confundir com SUV, detestado veículo da elite suja de Higienópolis) é uma espécie de Parkinson estético, produzindo tremores das convicções artísticas e políticas. Eis aí Caetano Veloso, o tropicalista, o criador de discos para “entendidos”, o qualquer coisa, o leãozinho, o quereres. Gosto da música dele, mesmo. Da música que o cara já fez: não corro atrás de discos novos. O mais recente está lá no Spotify e eu não ouvi. Pois o baiano insiste em matar o velhote inimigo que morreu ontem. Golpe, fora Temer, a treta toda. A UJS que vaiava no Festival Internacional da Canção agora pira. Os stalinistas que antes achavam a coisa toda muito alienada e colonizada, hoje convertidos em freixistas e haddadetes, estão prontos pra deixar o corpo ficar Odara. Aplaudem. Viva a Vaia? Não mais: Viva o Véio!
Mas então a Folha foi lá descobrir um coxinha do MBL que faz carreira paralela num tal Bonde do Rolé. Parece que o cara falou de uma “direita transante”. (Eu não entendi a novidade: fascista decerto não faz sexo? Esses bolsonaros juniores que concorrem a todos os cargos possíveis acaso nasceram por geração espontânea?) Bastou isso pro desespero bater em Painho: epa, tem algo novo aí! O Bonde do Rolé vai passar e eu vou ficar comendo poeira nos trilhos urbanos. E lá vai o Caetano, na mesma Folha, caetanear, aliterativo: “a direita transante é interessante”.
A expressão não é dele, certo. Mas a alegria, a alegria com que ele a abraçou! Terá escutado nela uma alusão lisonjeira ao disco londrino Transa? (Narciso, afinal, só acha bonito o que é espelho.)
Transante, derivado do verbo transar! Quando até o pueril “ficar” já caducou nestes dias do rude “pegar”, “transar” é uma brasa, mora? Nada denuncia tanto a idade quanto uma gíria ultrapassada.