David Brooks é um tipo que gosto de ler. Escreve uma coluna imensa, toda semana, no The New York Times, e sempre o vi como um mestre do common sense, naquela grande democracia. Nos últimos tempos, ele mudou um pouco o tom. Em um artigo recente, sugere que a “luta central”, do nosso tempo, é entre o “liberalismo e o autoritarismo”. Ótimo. Quem rejeitaria uma tese bacana como essa? O problema é o tom. Algo do tipo “nós, os liberais, os gentis, os tolerantes, os bem-educados”, contra essa gente perigosa, que vai do Putin até seu arqui-inimigo Trump. Brooks incomoda-se ao ver Trump ir bem nas pesquisas, prenúncio de que, mais uma vez, toda a beleza do liberalismo, tolerante, aberto às diferenças, pode estar indo ladeira abaixo. Vi um certo paradoxo aí. Me lembrou de uma postagem que li, de um intelectual bacana, chamando de “fascista” um sujeito delirante que sugeriu que a China estava por trás das enchentes no Rio Grande do Sul. “Põe a PF pra cima dele!”, terminava o post, com um ponto de exclamação.
É possível que o paradoxo venha da própria ideia liberal. Sua origem remonta ao século XVI, quando um punhado de intelectuais europeus começou a se dar conta de que ou aceitávamos o fato evidente que há uma fratura, que as pessoas pensam de maneira diferente, ou viveremos em guerra. Foi essa a conclusão a que chegou um humanista francês, Sebastian Castellio, que por volta de 1560 escreveu um livro hoje esquecido, chamado Conselhos a uma França Desolada. A França andava desolada por causa da guerra religiosa entre católicos e protestantes. Era uma guerra muito mais radical e violenta do que a briga entre Biden e Trump, na qual Brooks está metido. Uma guerra que Castellio considerava estúpida e para a qual só via uma solução: a tolerância religiosa. O conceito que está na raiz do pensamento liberal e, diria, da própria modernidade: que há ideias e tipos “insuportáveis” por todos os lados, mas que, por absurda que seja, não poderemos mandar essa gente para a fogueira. Ou, numa versão mais amena e civilizada, “pôr a PF pra cima” deles.
O lado paradoxal dessa longa história é o que eu chamaria de “princípio McCain”. Ele vem de uma resposta dada pelo então candidato republicano, John McCain, na campanha de 2008, quando uma senhora fazia acusações morais contra Obama. “Não, minha senhora”, cortou McCain, “ele é um cidadão decente” com o qual tenho divergências, e “é apenas disso que se trata esta campanha”. A sutil distinção está ali: a eleitora conduzia a diferença para o terreno ético. Diria: da “insuportabilidade”. McCain, para o terreno simples da dualidade liberal: ele pensa de um modo distinto, mas sua forma de pensar é tão legítima quanto a minha. Brooks vê o paradoxo de um modo diferente. “Ao pôr tanta ênfase nas escolhas individuais”, diz, “o liberalismo afrouxa os laços sociais”. Deixa as pessoas “espiritualmente inquietas”. De modo que elas tendem a buscar na política uma forma de “suprir o vazio moral e existencial”. Daí o tribalismo, as visões totalizantes, da política, que levam ao bate-boca permanente.
Brooks vê um problema existencial no liberalismo. Boas regras são importantes, assim como a neutralidade do Estado. Mas há um preço a pagar. Deixa de lado o desejo das pessoas de fazer parte de alguma “ordem transcendente”. Seja ética, seja religiosa ou ideológica. Algo que uma sociedade liberal não teria como oferecer. Lendo isso me lembrei do melancólico livro de Svetlana Aleksiévitch, O Fim do Homem Soviético. Uma obra de memória sobre o imenso sentimento de vazio que tomou conta das pessoas quando o mundo soviético desmoronou. Um mundo monstruoso, sob muitos aspectos, mas no qual havia uma “grande história” sendo contada, “da qual de algum modo fazíamos parte”. Reside aí o contraste: nas sociedades liberais, é possível que uma “grande história” sirva quando muito como pano de fundo. Mas o que conta são as histórias, infinitas, de altos e baixos existenciais, que forjam a arte da vida.
Os anos recentes tornaram o desafio liberal complicado. Diria que passamos por uma “crise pelo excesso”. Um enorme contingente de pessoas saiu do modo “passivo” para o “ativo” na esfera pública. O resultado é a cacofonia coletiva. A tecnologia reduziu os custos de intervenção pública. O que antes era exercido por meio de um partido ou sindicato passou a ser feito diretamente, de modo desordenado. Há um lado bom nisso tudo, mas gera uma sensação de mal-estar. O mal-estar que frequentemente chamamos de “crise” das democracias. Ao lado da cacofonia, há o surto de intolerância. E isso, lamento dizer, não vem de Putin ou Trump, como sugere Brooks. Vem de nós mesmos. Vem do sujeito que quer “pôr a PF pra cima” de quem pensa de um jeito “absurdo”. Vem dos disciplinadores da linguagem, dos tribunais que se metem a “curadores” da sociedade, e de todos, à esquerda e à direita, que querem usar a “força para mover a consciência”. Aquilo que, um dia, há mais de quatro séculos, Castellio descobriu que não era desejável.
“Renunciar à ‘guerra’ não é covardia. É um ato de civilidade”
Brooks diz que precisamos de novos líderes ao estilo de Roosevelt ou Reagan, capazes de dialogar com nossos “anseios mais profundos”. Não é por aí. Não são líderes eloquentes que darão às pessoas alguma razão existencial. Em uma sociedade liberal, não apenas a informação e a verdade, mas também a ideia de “sentido” anda espalhada. Cabe a cada um fazer sua própria “busca da felicidade”, como escreveram os pais fundadores na Constituição Americana. Sabe quem eles liam? Milton, Locke e os herdeiros de Castellio. Quanto à intolerância generalizada, o máximo que podemos fazer é andar na contramão. Quando a invenção de Gutenberg espalhou livros e entregou poder às pessoas, as coisas foram mais complicadas. Passamos dois séculos em guerra, até aprender a lição simples da tradição liberal, que frequentemente esquecemos.
Acho ótimo viver em uma sociedade liberal, cuja máxima, na observação de Alexandre Lefebvre, é “viva e deixe viver”. Seja cordial, trate os outros com respeito, contribua com a comunidade e tente fixar alguns objetivos pessoais. É quase tudo o que podemos fazer. Se seu vizinho for um cara de “direita”, o.k. Se a colega do beach tennis é de “esquerda”, o.k. Muita gente se irrita com isso, talvez por achar que renunciar à “guerra” seja covardia. Não é. É um ato de civilidade. Fique furioso, isso sim, se qualquer um, na sociedade ou em uma posição de poder, quiser controlar a regra do jogo. Reaja, pois essa deve ser neutra e impessoal, como o fundamento primeiro de nossa liberdade. No mais, lembre da frase de Lefebvre. Viva e deixe viver.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894