O Barão de Cotegipe tentou argumentar que a economia iria quebrar, que havia “direitos adquiridos”, que seria o fim do Império. Disse que o melhor era terminar com a escravidão ao “natural”, a partir da Lei do Ventre Livre. Até os anos 30 do século XX os últimos cativos “ingênuos” estariam liberados (como ironizava Joaquim Nabuco), e tudo se resolveria “suavemente”. No fim foi derrotado. Até para um país desavergonhado como o Brasil, aquele imenso crime já tinha ido longe demais. Mesmo assim não foi fácil.
Foi um presságio. Feita a República, levamos 43 anos para dar voto às mulheres. Bem adiante, levamos mais de setenta anos para reformar uma legislação trabalhista feita nos anos 40, e até ontem discutíamos se nossa maior empresa de energia elétrica precisa ou não ser estatal. Somos um país procrastinador de reformas, grandes ou pequenas, que precisam ser feitas. País lento para tomar decisões difíceis. Há razões para isso.
Um exemplo é a recente capitalização da Eletrobras. O projeto já constava no plano de privatização de FHC, nos anos 90. Depois permaneceu década e meia esquecido. Retomado após o impeachment, terminou inviável, no governo Temer, até ser finalmente aprovado na semana passada (leia na Carta ao Leitor). A votação sintetizou nosso problema com as reformas. Seus inimigos iam desde os do contra, por razões ideológicas, até os a favor, em tese, mas na prática contra, dado seu ódio pelo governo.
No meio do caminho, os grupos de pressão. O modelo da “distribuição para todos”, tão bem definido pelo economista Marcos Mendes. Os funcionários garantem um tipo de estabilidade por doze anos; elites regionais garantem que a nova empresa não poderá fechar subsidiárias nos próximos dez anos, e, de quebra, uma reserva de mercado para usinas termelétricas regionais. Ficou caro demais? Difícil saber. É o preço de nossa “democracia inclusiva”, disso não há dúvida.
O mesmo ocorre com a reforma administrativa. Ainda estamos discutindo se os funcionários públicos podem ter mais de trinta dias de férias; se precisa de mérito para avançar na carreira; se faz sentido ter uma coisa chamada “licença-prêmio”, na prática férias suplementares para os funcionários. E temas bizantinos, como a reforma valer ou não para os demais poderes. A presidente da Associação dos Magistrados disse que férias de sessenta dias são importantes para a atratividade da carreira de juiz. Foi uma voz isolada. Há um consenso republicano de que coisas assim não são mais cabíveis em um pais que preza minimamente a igualdade de direitos. Então por que nos arrastamos?
Nos anos 90, aprovamos uma emenda à Constituição dizendo que o desempenho dos funcionários públicos deveria ser avaliado. Coisa que acontece desde sempre no setor privado. Pois bem. A determinação está lá, no artigo 41. Uma frase perdida na “Constituição cidadã”, há exatos 23 anos. O preceito deveria ser regulamentado, mas os projetos nessa direção dormem em alguma gaveta no Congresso. Enquanto isso, no 133º ano da República, nossos funcionários prosseguem sem avaliação nenhuma.
“Precisamos de um consenso modernizador na economia e nas instituições”
O Brasil passou por um apagão de reformas nos anos 2005-2015. O resultado foi uma década perdida. Entre 2011 e 2020, tivemos a pior taxa de crescimento da historia republicana. Taxa média de 0,26% ao ano, em um país que vive o auge do bônus demográfico. Isto é, a maior presença proporcional de pessoas em idade produtiva. Deveríamos ter feito o trabalho de casa para crescer, mas não fizemos. Estudo recente de pesquisadores do Insper mostrou que, se tivéssemos aprovado o teto de gastos em 2010, e não em 2016, se poderia ter evitado a debacle fiscal vivida pelo país e a relação dívida/PIB seria de 67% em 2019, e não de 75,8%. É só um exercício. Há quem queira voltar à mágica fiscal que nos levou ao buraco. O ponto não é chorar o leite derramado, mas refletir sobre o que aprendemos disso tudo. Sobre tomar decisões difíceis. Dessas que em geral não estão nos trends de redes sociais, nem nas manchetes de jornal. Mas lá pelas tantas decidem o jogo.
Por que é tão difícil fazer reformas? Marcos Mendes escreveu um livro com esse título. Reformas podem doer, a curto prazo. Na Nova Zelândia dos anos 80 o desemprego foi de 4% a 11% nos primeiros anos da reforma, mas o país ostenta hoje uma das melhores qualidades de vida do mundo. Outra lição é sobre o timing. Lembro de ler gente bacana, logo após a reforma trabalhista, fazendo gritaria por aí: “Onde estão os empregos?”. Em regra, governantes pagam o preço de reformas cujos resultados surgirão com o tempo. Todos ainda se lembram do conselho dado a Temer no início de seu governo: “Aproveite sua impopularidade, presidente, faça o que precisa ser feito”. Bom conselho para quem quer um lugar na história, péssimo para quem tem um olho nas eleições logo à frente.
O Brasil é um tipo complexo de “vetocracia”. Produto de um Estado grande e vulnerável à pressão de grupos organizados, de dentro e fora da máquina pública. São os “capturadores de renda”, ávidos por incentivos, protecionismo alfandegário, benefícios corporativos, cotas e monopólios. A cada reforma, o mesmo problema: quem perde, a curto prazo, move-se com fúria pelo status quo; quem ganha, de maneira difusa e a longo prazo, tem pouco incentivo para entrar no jogo.
Nos anos recentes, conseguimos andar um pouco à frente. Reforma da Previdência, novo marco do saneamento, autonomia do Banco Central. O que nos falta é consenso para acelerar essas coisas. Algo próximo ao que fizemos com a democracia, nos anos 80, com a estabilidade econômica, no Plano Real, e mesmo com os programas sociais, nos anos seguintes. O que precisamos é de um consenso modernizador. No terreno da economia e das instituições.
Apenas doze países conseguiram, depois da II Grande Guerra, dar o grande salto. Sair da armadilha da renda média e enriquecer. Países como Coreia do Sul, Espanha, Austrália e Nova Zelândia. Não estamos nessa lista. Não soubemos aproveitar, até agora, nossa juventude para crescer. O economista Aod Cunha observa que teremos de triplicar o ganho de produtividade para crescer 2% ao ano na próxima década. Nesse ritmo não vai dar. Nossa elite poderá continuar indo a Miami, com tranquilidade, e podemos continuar achando que programas de transferência de renda vão resolver o problema. Mas, se for para dar um salto como país, não tem jeito. Teremos de construir novos consensos, sacudir nosso vezo procrastinador e encarar as escolhas difíceis que precisam ser feitas.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 30 de junho de 2021, edição nº 2744