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O crime sem remorso

A tradição das democracias liberais se fez da separação entre política e religião

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 20 jul 2024, 08h00

Thomas Crooks saiu cedo de sua casa em Bethel Park, perto de Pittsburgh, comprou munição, uma escadinha e rumou para o comício de Trump, no condado de Butler. Armado com um rifle, subiu em um telhado, caprichou na mira e o resto da história é bastante conhecido. Por que ele fez isso? Tudo indica que ele não seja um amalucado, como Mark Chapman, o matador de John Lennon. Tampouco o centro de uma conspiração, como Gavrilo Princip, o assassino de Francisco Ferdinando, que acabou levando à Primeira Guerra Mundial. Crooks agiu em silêncio. Talvez achasse que Trump era mesmo uma ameaça “existencial” à democracia americana e que alguém precisava fazer alguma coisa. Ou visse no candidato republicano o próprio demônio. De algum modo, havia um cálculo ali. Ele devia saber que seria morto, naquele telhado, mas de alguma forma achou que valia a pena. Pelo bem que ele produzia para os Estados Unidos compensava ser cravejado de balas, aos 20 anos, por um sniper do serviço secreto americano.

Fosse Hitler naquele palco, no Condado de Butler, provavelmente quase todos achariam a mesma coisa. E é aí que surge o problema. Há coisa de algumas semanas, era exatamente a analogia Hitler-Trump que ilustrava a capa da The New Republic, tradicional revista “progressista” americana. Soa grotesco, mas está lá. Não apenas as imagens de Hitler e Trump misturadas e o título: “Fascismo americano”. Mas a ideia: muita gente também achou, à época do Führer, nos anos 30, que “seus críticos estavam exagerando”. A mensagem é clara. E a pergunta que fica no ar: o que alguém deveria ter feito com Hitler? Fosse algo isolado, seria apenas uma nota de rodapé da birutice atual. Mas não é. Já em 2017, a revista Stern havia feito a mesma coisa. E ainda neste ano The New Yorker fez sua capa com uma imagem de Trump ao estilo fascista. O próprio Mike Godwin, autor da “Lei de Godwin”, que trata da banalização do nazismo, nos bate-bocas digitais, escreveu dizendo que, no caso de Trump, as comparações com o déspota alemão talvez fizessem sentido.

Li por estes dias que todos seriam de alguma forma “culpados” por esse crime. E que ele poderia ter acontecido com Biden, tanto como com Trump. Será? Biden é criticado por suas gafes, sua aparente senilidade (pelos próprios democratas), por sua “incompetência” externa, política migratória etc. Mas não me consta que tenha sido sistematicamente retratado como algum tipo de monstro ameaçando a civilização. É claro que sempre haverá quem diga que está tudo o.k., que Trump é de fato a encarnação de algum demônio. O que apenas confirma a tese. Diria que o problema é mais amplo. Ele diz respeito ao processo sistemático de demonização e recusa da legitimidade de novos atores que emergem em nossas democracias digitais. Isso diz especialmente respeito à chamada “nova direita”, mas não só a ela. Ainda no fim de semana do atentado, Thomas Friedman escrevia no The New York Times dizendo que Trump era um “homem mau”, um “delinquente” que “mente tanto quando respira”. O artigo é típico: migra da política para o terreno moral. Sugere que vivemos em cenário pintado pelo diabo. E o ponto crucial: que apenas o Partido Democrata teria algum compromisso com a democracia.

A lógica é simples: não estamos tratando de uma disputa normal, entre candidatos, mas de uma guerra do bem contra o mal. Há um imperativo existencial em jogo, o que pode ser entendido de muitas maneiras. Uma delas quem sabe se reflita na pesquisa do Chicago Project on Security and Threats que mostra que 10% dos eleitores americanos acham aceitável algum uso de violência para bloquear a volta de Trump. Algo perto de 20 milhões de pessoas, em um país que assistiu ao assassinato de Lincoln e Kennedy e a um longo rastro de violência política.

“A tradição das democracias liberais se fez da separação entre política e religião”

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A mesma lógica existencial emergiu na quase histeria a que assistimos nos dias que se seguiram aos bons resultados da direita nacionalista no primeiro turno das eleições francesas. Quem capturou bem o espírito da coisa foi o grande pensador espanhol Fernando Savater. “O que é assombroso”, escreveu ele, “é que exista quem suponha que suas convicções políticas são por si e pela graça divina superiores às dos demais”. E concluiu: “Então vemos a maioria da imprensa falando que a Europa treme diante da ascensão da extrema direita como se a tal extrema direita fosse um fenômeno telúrico, um tsunami ou um terremoto, e não o resultado do voto livremente dado por cidadãos europeus que pensam de maneira distinta dos ‘estremecidos’”. A esquerda acabou vencendo, no segundo turno, e o tema da barbárie saiu de cena. É algo similar a certos indicadores sobre a saúde da democracia, que costumam se mover acima ou abaixo, a depender de quem ganha as eleições. Há um lado pueril nisso tudo. Há um certo domínio sobre os meios de opinião, na mídia e na academia, que facilita a ginástica da demonização. Mas quem sabe exista um lado mais sombrio. A história da violência e do assassinato político esteve sempre ligada à sacralização das grandes palavras. A história de Sofia Perovskaya, que ajudou a mandar pelos ares o czar Alexandre II; de Leon Czolgosz, anarquista, quase tão jovem como Brooks, que também fez um cálculo macabro, só que dessa vez matando à queima-roupa o presidente americano McKinley, em 1901. Em toda esta longa história de sangue há um ponto em comum: o crime sem remorso. O crime feito em nome de uma ideia, e só estava à espera de tipos sacrificiais como Perovskaya, Czolgosz ou Crooks para que fosse finalmente executado.

O ponto é: se desejamos deter a violência política, o melhor a fazer é renunciar a um tipo de retórica que concede à violência uma pátina de virtude. E isso vale para qualquer lado do jogo, à esquerda e à direita. Quando Trump ganhou as eleições, em 2016, Obama fez uma reflexão, no gramado da Casa Branca, lembrando que a democracia era assim mesmo. Que “por vezes você ganha, por vezes perde”. Quando você perde, disse ele, você “aprende com seus erros, limpa as feridas, e voltamos para a arena”. Ele tinha razão. Os democratas foram ao fundo do poço e depois voltaram. Pode ser que o mesmo aconteça agora, com os republicanos. Sou coroa o suficiente para lembrar do alarde em torno de Bush e a “teocracia americana”. Depois veio Obama, e o jogo segue. E é assim que deve ser. O próprio Biden parece viver essa ambivalência. Em um momento ele diz que devemos tratar nossos oponentes como adversários, não inimigos; em outro, diz que seu adversário é um “risco existencial” à democracia americana. Há uma escolha a fazer aí. A tradição das democracias liberais se fez do lento e difícil processo de separação entre a política e a religião. Da ideia de que há um limite para a ação política. E logo para a retórica. E que, se insistirmos em ultrapassar esses limites, é o espectro da violência que passamos a enxergar, logo ali à frente. Quem sabe seja sobre isso a lição triste desses últimos dias, sobre a qual valeria a pena refletir.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

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Publicado em VEJA de 19 de julho de 2024, edição nº 2902

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