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Lições do Rio Grande

Dois Brasis: de um lado, a fatia amigável; do outro, a franja barulhenta

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 jun 2024, 16h56 - Publicado em 11 Maio 2024, 08h00

De longe dava para ver aquele casal abraçado, com o cachorro no colo, em cima do telhado. Fazia vento, o helicóptero chegou balançando, mas deu para subir. Era o Maneco, jeito de colono, tipo acostumado com a dureza da vida. Mas não teve jeito. Quando a aeronave arrancou com força e a casa foi sumindo, no meio daquela água toda, baixou o rosto e chorou, feito uma criança. Me emocionei com todas essas histórias nos últimos dias. Talvez como gaúcho, talvez como brasileiro. Me emocionei quando vi minhas vizinhas, aqui em São Paulo, que mal conhecem o Rio Grande, fazendo uma corrente com as mães da escola, coletando roupas, juntando dinheiro para comprar um estoque de calcinhas (“porque quase ninguém doa”, me explicaram). Me emocionei porque todas estas coisas criam um sentido de comunidade. Pode ser momentâneo, estamos diante de uma tragédia, há dezenas de pessoas mortas, há cidades embaixo d’água, mas em meio ao sofrimento enxergamos uma força da qual muitas vezes nos esquecemos: a força da empatia humana, virtude frágil, que esquecemos de cultivar.

Empatia que virtualmente some no universo sombrio de um certo radicalismo político, em nossa democracia. E também foi a isso que assistimos, como um veneno, por estes dias. “Sobreviver antes. Pensar nas escolhas políticas que tenho feito depois”, dizia uma charge em um jornal, com a imagem de gente agarrada a uma tábua, na enchente. De um jornalista militante, leio algo mais explícito. “Se continuarem votando na extrema direita, têm mais é que morrer afogados.” Até mesmo uma ministra aproveitou a ajuda oficial do governo, feita com dinheiro do contribuinte, para fazer demagogia eleitoral. O.k., há uma trivialidade aí, há gente fria e radical, em qualquer lugar. Mas há algumas lições. A primeira é que esse é o sentimento de muita gente, no universo tóxico das redes sociais. O mundo do sujeito que diz: “Votaram no candidato de que eu não gosto? Não acreditam na minha tese A ou B sobre o clima? Então aguentem”. Um pouco como a ideia da peste e do pecado, na Idade Média. Apenas recauchutada nos termos de nossa época, em que a obsessão da política ocupou o lugar que um dia pertenceu ao fanatismo religioso.

O ponto é que, se a vida, o contato e o sofrimento aproximam, a política, a crença e o dogma afastam. Foi esse o sentido da imagem de Adam Smith sobre o terremoto na China. A China é distante, e se houver um terremoto por lá e muita gente morrer, vamos nos preocupar, mas logo esquecer solenemente o assunto. E se amanhã machucarmos o dedinho, é com isso que estaremos preocupados. Uma enchente é um terremoto na China; nossos pequenos ódios e amores políticos são como aquele dedo, na ironia de Smith. Camus foi mais duro. Disse que toda a tragédia do mundo surgiu quando alguém decidiu que era aceitável “matar um homem em nome de uma ideia”. Foi sobre isso sua ruptura com Sartre, o intelectual ativista. O tipo que precisamente não via tragédia nenhuma em “matar um homem em nome de uma ideia”. De um lado, a propensão humanista e sua força vital, a empatia humana. De outro, a força abstrata da ideia que se petrifica como dogma, em nossas democracias ultrapolarizadas.

É aí que surgem os dois Brasis, diante da tragédia no Rio Grande. De um lado, uma larga fatia da sociedade disposta a enxergar o mundo de maneira amigável e arregaçar as mangas. Diria: o common sense. De outro, uma franja barulhenta, cujo critério é dado pela política. Saber se é Lula ou Bolsonaro, se é “fascista”, se acredita nesta ou naquela tese climática. Stephen Hawkins, diretor do projeto More in Common, fez uma ampla pesquisa mostrando que as franjas “radicais” do sistema político representam 14% da opinião pública. À esquerda ou à direita, não importa. Essas pessoas são minoria, mas com um detalhe: seu engajamento digital é mais de três vezes superior ao do amplo espectro de pessoas que tendem à moderação e que compõem mais de 80% da população. Ou seja: são minoria, mas dão o tom. O tom da democracia digital. São pessoas que dariam risada de minhas vizinhas negociando a compra de calcinhas. E dão risada porque só elas sabem o que realmente “importa”. E por isso não vão perder tempo com “essa gente” que teima em não aprender.

“Dois Brasis: de um lado, a fatia amigável; do outro, a franja barulhenta”

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Vai aqui um dos problemas centrais de nossas democracias. Sem que ninguém planejasse, simplesmente por efeito da revolução tecnológica e sua “algoritmização” da vida, criamos um gigantesco mecanismo de seleção adversa em nosso debate público. As pesquisas mostram que as chances de uma postagem de ódio, medo ou escândalo ser compartilhada são maiores do que as de uma postagem ponderada, informativa, por mais relevante que seja. Se alguém duvidar, é só experimentar (não recomendo). Poste duas mensagens: uma pedindo apoio para os desabrigados, com uma foto da tragédia, e outra do político de que você não gosta (prefeito, governador ou presidente), com a frase mais virulenta que você imaginar. Há muitos experimentos nessa direção, e os resultados são claros. Vivemos em um mundo político onde a ponderação perdeu espaço para o “combate”. E a empatia, para a raiva. Não há uma solução para isso, mas, sim, alguns caminhos. Um deles é fugir do groupthinking. Do “pensamento grupal” e das obsessões da política. Não é uma saída fácil. A estridência digital se tornou uma indústria, vale dinheiro, e a internet é, por definição, um ambiente de baixa empatia. Outro caminho vem, por estes dias, com as imagens que nos chegam do Rio Grande. Não tanto do sofrimento, mas da resposta ao sofrimento. Não daquelas águas traiçoeiras, mas da reação das comunidades, diante daquilo tudo.

Vai aí a batalha do nosso tempo. Entre um enorme contingente, silencioso, de pessoas dispostas a entrar em um rio e retirar idosos, crianças ou um cusco de cima de um telhado. Dispostas a fazer uma corrente humana, com água até o pescoço, para puxar um comboio de embarcações precárias, na periferia de Canoas. Ou ainda a infinita rede de pessoas que, em vez de satisfazer o ego e espalhar toxina inútil, compreenderam que há momentos em que mesmo um grande país como o nosso, dividido, machucado, pode funcionar como comunidade. Essa, no fundo, é a primeira lição que o Rio Grande vai dando ao país. Sua melhor imagem é daquela criança, carinha redonda, olhos assustados, erguida para dentro de um helicóptero, no meio do nada. Ela viverá escutando histórias de fraternidade e heroísmo. E quem sabe possa fazer melhor. Possa crescer aprendendo sobre esta arte difícil, a empatia humana. E quando as águas baixarem e ela mesma fizer o seu destino, lembrar dessa imagem e suas antigas lições.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

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Publicado em VEJA de 10 de maio de 2024, edição nº 2892

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