Pablo Marçal vê a política como um tipo de guerra. E está longe de ser o único. A retórica existencial, segundo a qual “o meu adversário é um risco à civilização, à democracia, ao planeta”, tomou conta da política. E não apenas aqui nos trópicos. Marçal talvez seja apenas uma versão extrema e popularesca do fenômeno. Algo como: “Não há nada a debater, só inimigos a ser derrotados”. E para isto vale qualquer coisa. A grande novidade é a cadeirada. O vale-tudo de Marçal vai até o uso da palavra. Uso malandro, agressivo. Mas restrito à retórica. A cadeirada ingressa em terreno distinto. Tem um ar de lucha libre mexicana. E um lado sombrio. Talvez seja a imagem mais bem acabada daquilo em que nossa democracia foi se transformando.
O ponto é a banalização da violência. A teoria da “equivalência” entre as “duas agressões”. De um jornalista, li que a cadeirada havia sido apenas “a parte física” da agressão. E que as pessoas “compreendiam” a atitude do agressor. Em nosso mundo de opinião, a regra foi o “mas”…. Algo do tipo: “O.k., é errado fazer um ‘traumatismo no tórax’ do adversário em um debate. Mas…”. Foi o que vimos, com toda a sorte de medidas de exceção, nos últimos anos no Brasil. “O.k., censura é errado, mas…”; “Há abusos de poder, mas é preciso, não é mesmo?” Abusos do bem, censura do bem. Qual seria mesmo o problema de uma cadeiradinha do bem? Curioso é imaginar como nosso mundo opiniático reagiria se fosse o oposto, se Marçal, um “bolsonarista pior que o próprio”, como escutei por estes dias, tivesse dado a cadeirada. Alguém imagina quantas vezes teríamos escutado as palavras “fascista” e “nazista”? O duplo padrão é esporte nacional. E por aí, lamento, não acho termos muito conserto. O resultado é simples de compreender: se usar a violência física é aceitável, então quem sabe não exista muito o que reclamar do “estilo Marçal”. E aí, de fato, estamos com um problema.
É um pouco inútil lembrar de alguns fatos simples. Todo o edifício da política moderna foi construído pela recusa da violência. Pela separação rigorosa entre o uso da palavra, por mais agressiva e abjeta que seja, e o uso da força. Há também uma questão de mercado. Se a campanha eleitoral da maior cidade do país se converteu em um ridículo pastelão, é porque os eleitores compram essa atitude. Já cansei de escutar a reclamação do porquê os candidatos não apresentam ideias e propostas. Eles apresentam, mas ninguém dá bola. Uma maneira de entender essas coisas é prestar atenção à divisão dos eleitores em dois grandes grupos, feita por Jason Brennan: os hobbits e os hooligans. Hobbits são os que dão pouca bola para a política e tratam de cuidar da vida: por que cargas d’água alguém perderia tempo com política, se um voto não vale coisa nenhuma? E se ninguém será responsabilizado, se sua escolha eleitoral for um desastre. O segundo grupo são os hooligans. A turma dos apaixonados. O xarope do X, o obsessivo do WhatsApp. Eles são um mistério. Se o sujeito não ganha nada com isso, para que mesmo perder tanto tempo defendendo ou xingando o Boulos ou o Marçal? Não há uma resposta clara. A melhor hipótese é que as razões são as mesmas que levam alguém a torcer pelo Corinthians ou Flamengo. Ou entrar no fã-clube da Taylor Swift. É um tipo de entretenimento. De gosto duvidoso.
Há um terceiro tipo, os vulcanos. A inspiração vem de Star Trek e do Mr. Spock. Tipo frio e racional. Tem muita informação e pouquíssima emoção. Gosta de dados. E se o candidato em que ele votou fizer besteira, ele muda de voto, sem problemas. Vulcanos são tolerantes. Não acham que seus adversários devam ser calados, mesmo dizendo absurdos. Se os vulcanos fossem maioria, não haveria baixaria. Pablo Marçal não existiria, ou seria um tipo comportado. Nenhuma cadeirada seria tolerada. O problema é que eles não são maioria. São uma minúscula minoria, por uma razão: não há incentivo, na democracia, para que o sujeito se comporte como vulcano.
“Antes da internet, as instituições faziam o filtro e a mediação”
Brennan toca em um tema conhecido: as pessoas são brutalmente desinformadas no mundo da política. Pesquisa mostrou que 64% dos eleitores sequer se lembravam em quem haviam votado para deputado nas últimas eleições. A informação é cara. A não ser que você seja um consultor profissional, ninguém vai lhe pagar para entender da reforma tributária. E não passa de um delírio imaginar que um cidadão vai gastar um fim de semana para saber como os candidatos pretendem lidar com a saúde ou os resíduos sólidos. Isso não vai acontecer. Na era da democracia tradicional, antes da internet, as instituições faziam o seu trabalho de filtro e mediação da opinião. E o grande demônio político era a alienação. Ainda me lembro de Bertolt Brecht xingando o “analfabeto político”. Dizendo que era da sua “ignorância política que nasce a prostituta, o menor abandonado, o assaltante”. Brecht se surpreenderia observando o volume de pessoas interessadas em política hoje em dia. E depois assistindo aos debates. Talvez compreendesse que o excesso e o engajamento político não serviram para grande coisa. As redes sociais criaram um enorme mecanismo de seleção adversa. Os radicais, à esquerda e à direita, são minoria na sociedade, mas seu engajamento digital é cinco ou seis vezes maior do que o da chamada “maioria silenciosa”. São minoria na sociedade, mas dominam o debate público. O ecossistema digital fez o hooliganismo ganhar espaço nas democracias. É aí que se abre o espaço para tipos como Pablo Marçal. E, quem sabe, para nossa aceitação daquela cadeirada.
Gosto de pensar na imagem perturbadora do Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago, que virou filme, para definir um pouco do que se tornou nossa arena pública na era digital. Aquela luz branca infernal, cegueira feita do excesso de luz. E logo o caos. As gangues, a guerra pela comida, os corpos e dejetos humanos espalhados pelo chão, a erupção dos piores instintos. A cegueira é uma metáfora. Por vezes ela vem da falta, por vezes do excesso. De ruído, de gente falando ao mesmo tempo, sem disposição para escutar. E, no meio disso, a sedução da violência. Como vamos sair dessa? Não sei. No fundo, o que nos resta é uma escolha individual. Cultivar juízos imparciais ou cair na seletividade? “Prerrogativas” para qualquer cidadão, ou só para a nossa turma? E achar que “foi pouco” aquela cadeirada, porque, afinal de contas, estamos todos em meio a uma guerra. É isso? Vai aí a escolha de cada um. No fundo, a provocação incômoda da esposa do médico, na fábula de Saramago: “Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos tudo para não viver inteiramente como animais”. Ela era a única que guardava alguma lucidez ali. E confesso que foi sua frase que me veio à cabeça por estes dias, assistindo àquele debate em São Paulo.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2024, edição nº 2911