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Fernando Schüler

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Convicções e democracia

Por muito tempo fomos adquirindo uma visão cínica da política

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 jun 2024, 17h04 - Publicado em 4 Maio 2024, 08h00
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  • Causou certo furor a notícia de que o governador Tarcísio de Freitas teria feito elogios ao ministro Alexandre de Moraes. Não faço ideia se a notícia era verdadeira e não entro no mérito das declarações. Do meu modesto ponto de vista, podem-se preservar boas relações institucionais, em uma democracia, ainda que se possam criticar — mesmo duramente — as ações de uma autoridade. Se isto não for possível, não vivemos mais propriamente em uma democracia liberal. Seria este o nosso problema? O ponto que me parece interessante foi a discussão que se seguiu. Em especial, a ideia de que se estaria gerando uma “direita moderada” no país. E que isto seria positivo. Um artigo bastante provocativo dizia que o Brasil precisava de um “bolsonarismo moderado”. A turma da lacração aproveitou para faturar alguns likes, mas o artigo tocava em um bom ponto: o país precisa parar com essa ideia de “erradicar” o outro lado e aceitar a ideia de que esquerda e direita devem conviver com alguma civilidade. E que isto deve incluir indistintamente quem apoiou Lula ou Bolsonaro, nos últimos anos.

    Desde a redemocratização, o Brasil sempre teve uma disputa entre posições mais “à direita” e mais “à esquerda”. Sempre teve duas “turmas”, em termos de visão econômica e sobre o papel do Estado. Elas são identificáveis nas grandes decisões e nas votações do Congresso nos últimos trinta e tantos anos. Nas privatizações do início dos anos 90, envolvendo a CSN, a Embraer, a Vale do Rio do Doce, o setor de telefonia, as duas turmas já estavam lá. Cada uma com seu léxico próprio. Um lado chamando de “modernização”; outro, de “desmonte” do Estado. Foi assim com a reforma do Estado. Quando se votou a Emenda 19 à Constituição, introduzindo a avaliação de desempenho dos servidores (nunca posta em prática), um lado ficou a favor, outro, contra. A mesmíssima coisa aconteceu com o Plano Real, a criação das organizações sociais, as agências reguladoras, a Lei de Responsabilidade Fiscal. Em cada uma dessas decisões, estavam lá as duas turmas.

    No ciclo de reformas que se abre com o impeachment, em 2016, a história se repete. Teto de gastos, lei das estatais, reforma trabalhista. Lula associando a reforma a um “tratamento do tempo da escravidão” para os trabalhadores, e a outra turma, que seria a mesma base dos governos Temer e Bolsonaro, mais quase todo o PSDB, falando em “desburocratizar” as relações de trabalho. Com Bolsonaro, o roteiro segue intacto. Reforma da previdência, marco do saneamento, privatização da Eletrobras, lei da liberdade econômica, autonomia do Banco Central. Talvez apenas no biênio 2003-2004 tenhamos cruzado alguma fronteira, quando se aprovaram coisas como aquela minirreforma da previdência e a criação das PPPs, com o apoio da então oposição. Mas foi uma exceção. Quando Palloci caiu, o trem voltou para os trilhos.

    O que explica a existência dessas duas agendas? Arrisco uma resposta rápida: convicção. É óbvio que o contexto importa, que em um momento temos uma pandemia, em outro, um impeachment, e, ainda em outro, aquelas “denúncias” contra o presidente, no governo Temer. Há muita coisa, inclusive a sorte e o azar. Mas no fim do dia a constante é a convicção. Se quem lidera o país acha realmente que ter uma regra dura como a lei das estatais, tentando proteger nossas empresas do clientelismo político, é ou não importante; se quem lidera acha que é estratégico ter um BC independente, ou que é positivo abrir o mercado de saneamento para o setor privado. Por muito tempo, e com alguma razão, fomos adquirindo uma visão cínica da política — a ideia de que tudo se moveria a partir do pequeno jogo de poder. Coisas como a distribuição de emendas, os penduricalhos para a alta burocracia, o populismo de perdoar dívidas e conceder incentivos aqui e ali — tudo isso é parte da espuma, do feijão com arroz da política. Mas é só observar a trajetória das grandes reformas, daquilo que realmente fez a diferença, em nossa história recente, para perceber que era a convicção de quem tinha o comando do jogo que fez, ao cabo, toda a diferença.

    “Por muito tempo fomos adquirindo uma visão cínica da política”

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    Tempos atrás, alguém me disse que uma “esquerda moderna poderia ter apoiado toda esta série de reformas”, ao longo do tempo. De fato. Se tivéssemos um Tony Blair no Brasil, ou um Roger Douglas, o líder trabalhista que revolucionou a Nova Zelândia nos anos 80, liderando nossa esquerda, isso poderia ter acontecido. Mas a verdade é que não temos. Nem mesmo um Pepe Mujica, com coragem para denunciar uma ditadura que por aqui apoiamos, conseguimos produzir. Talvez Fernando Henrique tenha sido nosso mestre reformador. Aquele que vem da tradição da esquerda e entende, em um certo momento, que o mundo mudou e que é preciso modernizar o Estado, privatizar empresas, levar a sério a responsabilidade fiscal. É interessante comparar precisamente a linha de continuidade de seu programa de reformas com o que foi feito no Brasil recente. Ou alguém acha que existe alguma contradição entre o programa de reformas dos anos 90 e o que fizemos agora sobre o saneamento ou a independência do BC?

    Convicção também vale para a democracia. Pela primeira vez, desde a transição dos anos 80, temos um problema em larga escala com as “regras do jogo”. Não precisamos de nenhuma investigação do Congresso americano para saber o que está acontecendo no nosso próprio quintal. Dias atrás observei um jornalista de “direita” sendo processado pela máquina jurídica do Poder Executivo, por ter “passado do limite” em suas críticas ao presidente. Como o “limite” era decidido pelo próprio poder político, me perguntei o que aconteceria se isto se tornasse uma regra. O que aconteceria se um eventual governo de “direita” resolvesse igualmente processar todos os jornalistas de “esquerda” que passassem do limite, também definido pelo próprio governo. Rapidamente, nos consagraríamos como a pátria do lawfare. Da intimidação jurídica típica de países autoritários.

    Tudo isto já foi longe demais. Uma democracia liberal, para funcionar, exige que os direitos sejam iguais para todos. Pessoas que obstruem rodovias ou invadem prédios públicos devem ser julgadas, na forma da lei, tanto quanto autoridades que abusam do poder, punindo pessoas, praticando censura prévia, atropelando o devido processo, à revelia das leis e da Constituição. Esta é a condição mais elementar para que o debate franco e aberto, e por vezes duro e “fora do tom”, possa florescer em nossa democracia. O que precisamos, no fundo, é zerar o problema com as regras do jogo. É de normalidade institucional, para que o debate econômico e social volte ao centro do jogo. Algo que demanda convicção. A convicção da democracia liberal. Se é disso que se trata quando se faz um apelo à moderação, estou de pleno acordo. Se, no entanto, isto significa a transigência com a infração sistemática de direitos, penso que ingressamos em um caminho que ninguém deveria trilhar.

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    Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

    Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

    Publicado em VEJA de 3 de maio de 2024, edição nº 2891

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