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As lições de Voltaire

Nosso rastro de pequenos e grandes abusos já vai longe

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 22 jun 2024, 08h00

Comentei com uma amiga jornalista que ia escrever sobre o caso do Filipe Martins. Ela foi rápida: “Não faz isso”, disse ela, com jeito querido. “Por quê?”, perguntei, já antevendo a resposta. “Porque esse treco de prisões e censura da ‘direita’ não tem jeito. É como aquela traição sobre a qual o casal não fala. Tem muita coisa errada, mas é melhor empurrar para debaixo do tapete.” Achei criativo. É isso mesmo. Mas resolvi escrever. Talvez eu seja meio implicante. Ou seja o gosto pela filosofia. Na minha intuição, o país precisa tratar das coisas complicadas. E uma delas é esse “treco” da prisão provisória e aparentemente infinita do Filipe Martins. Ele era assessor do Bolsonaro e me lembro de uma imagem dele apertando a mão do Trump, no Salão Oval. Sua prisão já vai para mais de quatro meses. O mandado dizia que sua localização era “incerta”, que poderia ter havido “burla do sistema migratório”, e por isso seria “necessária a decretação da prisão cautelar”. Dizia também que ele constou na lista de passageiros daquele voo do Bolsonaro para Orlando, no finalzinho de seu governo. O que “poderia indicar que tenha se evadido do país”, para fugir da Justiça. Tudo 100% errado. O sujeito não fugiu, a localização não era incerta, morava com a namorada, em Ponta Grossa. E já provou inúmeras vezes que não “se evadiu”. Para encurtar a conversa, sua prisão é um completo nonsense. O absurdo a fogo brando, com o qual há muito parece que já fomos nos acostumando.

No Brasil de hoje é assim. Viramos colecionadores de absurdos. Um que está na minha lista dos top 10 é o da Debora. Ela estava lá, nas invasões do 8 de Janeiro. Cabeleireira de São Caetano, mãe de dois guris de 6 e 9 anos. No dia do “golpe” escreveu “perdeu, mané”, com batom vermelho, naquela estátua de pedra da Justiça, na frente do STF. Andava com a frase debochada do ministro Barroso na cabeça, foi lá e escreveu. O batom acabou saindo com um pouco de detergente, mas sua imagem está lá. Foi um repórter que flagrou. Ela ali sentada, calmamente, rabiscando a frase terrível, com um “sorriso no rosto”, como leio numa reportagem. Achei que tinha lido “sorriso golpista”, mas foi imaginação. O fato é que ela está presa há mais de um ano. E pelo jeito será condenada a mais uns quinze ou dezessete. Nossa Suprema Corte acha que ela estava dando um “golpe de Estado” naquele domingo. É possível. Quem sabe ela poderia realmente ter tomado o poder, se não tivesse perdido tempo com a maldita frase. Cresci com as imagens do golpe de 1964, dos tanques descendo a Presidente Vargas, no Rio, as baionetas, a tropa na rua. E agora aquele batom? Algum plano? Algum apoio militar? Alguma arminha, mesmo que de brinquedo? Esquece. Isso é ou não é um “experimento popperiano”, me diz um conhecido. Não é possível provar ou refutar coisa nenhuma. Há uma tese, produzida em última instância e apoio no mundo da opinião. É o que basta, no Brasil de hoje. A maior chance é que os guris cresçam sem Debora. No último Natal o mais novo foi para o canto da sala e chorou. Disse que, sem a mãe, nada daquilo tinha graça. Todos choraram. E o Natal se foi. Perdeu, manezinho. A frase nua e crua que faltou alguém escrever naquela estátua.

Dói um pouco mergulhar nessas histórias. Mas é necessário. É o jeito de entender o que se passa no país, um pouco abaixo da pele retórica das redes, do bate-boca político. Reconheço que há uma impertinência nisso. Tempos atrás me perguntaram por que presto tanto atenção a certos “detalhes”. Onde está o crime, qual a acusação, onde está escrito na lei tal e tal coisa. Fiquei pensando nisso. No fim me dei conta que é exatamente dessa intransigência em relação a direitos individuais que é feita a tradição liberal. Mas isso não respondia à pergunta. Há um lado pessoal nisso tudo. Por alguma razão, fui aprendendo na vida a desconfiar da narrativa política. Qualquer narrativa. E criando também um enorme asco pelo abuso de poder. E é com isso que estamos lidando no Brasil. Se a censura prévia não existe na lei brasileira, mas uma autoridade empurra goela abaixo a censura prévia, o que exatamente isso significa? Se alguém é preso, por razões inexistentes, no mundo real, estamos ou não falando de abuso de poder? Tempos atrás também me perguntaram se fazia sentido questionar decisões judiciais. Na visão do meu interlocutor, não fazia. Se um ministro manda prender ou manda soltar, dizia ele, ou manda qualquer coisa, é a regra do jogo. Ponto. O raciocínio tinha lá seu apelo, mas era falso como uma nota de 3 reais. Uma República se define precisamente pelo fato de que ninguém, nem mesmo a mais alta autoridade, está acima das leis e da Constituição. De modo que decisões judiciais estão aí para serem obedecidas. Mas jamais para pedir que os cidadãos deixem de pensar com a própria cabeça.

“Nosso rastro de pequenos e grandes abusos já vai longe”

O gosto pela impertinência vem da história. Voltaire talvez tenha sido o grande mestre, e suas histórias sempre me cativaram. Uma delas é a de Jean Calas, o comerciante de Toulouse queimado na fogueira, em 1762, acusado de matar o filho por motivos de religião. Voltaire agarrou aquele caso com as unhas. Escreveu, apelou a Paris, aos tribunais, ao rei. E virou o jogo. A outra história é ainda mais reveladora. Sua defesa do jovem Jean-François de La Barre, acusado de profanar um crucifixo e debochar da religião. La Barre era um tipo iconoclasta, e se recusou a tirar o chapéu numa procissão, e isso era coisa pesada à época. Possivelmente bem mais do que pintar uma estátua com batom, em Brasília. La Barre terminou na fogueira, como Calas. Foi o último francês queimado por blasfêmia. Voltaire mergulhou naquela história, quis saber da culpa, das provas, do trabalho dos juízes. E novamente virou o jogo. Note-se que ele nem sequer conhecia La Barre ou Calas. Sabia apenas que aquilo não era justo, que os juízes eram enviesados, que o devido processo tinha sido atropelado e a excitação religiosa havia “tomado o lugar da prova”. E que aquilo ofendia não apenas a memória daqueles dois franceses manés, mas a todos os franceses, que viviam sob as mesmas leis. Mais do que isso, ofendia a própria ideia de justiça. E que por isso era preciso ser intransigente.

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Nossa época é muito diferente daquela de Voltaire. O fanatismo religioso foi substituído pela paixão política, e somos mais civilizados. Não queimamos ninguém na fogueira, o que nos dá uma certa vantagem. Mas nosso rastro de pequenos e grandes abusos já vai longe. Na França de La Barre e Calas ainda havia os tribunais, em Paris, e depois o rei, a quem se podia recorrer. E por fim havia a letra de Voltaire. Ele e sua impertinência. No Brasil não temos nada disso. O que temos é um país que vai se acostumando. Empurrando certas histórias para debaixo de um imenso tapete. Até quando? Não faço a menor ideia.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 21 de junho de 2024, edição nº 2898

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