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Armadilha identitária

A segregação ‘positiva’ vem fincando raízes, em particular, nos EUA

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 6 jul 2024, 08h00

“Ansiosa para ser presa quando voltar ao berço do iluminismo escocês”, escreveu J.K. Row­ling, autora de Harry Potter, em um tuíte. Row­ling fazia referência à nova “lei de crime de ódio” que entrou em vigor na Escócia, este ano. A lei menciona uma lista de grupos “protegidos”, ligados a gênero, idade, orientação sexual etc., e diz que atitudes “que uma pessoa razoável consideraria ameaçadora” são passíveis de punição. Caberá à polícia e aos juízes dizer exatamente o que isso significa, e não é difícil imaginar a confusão que a nova lei está causando. Ela é um bom exemplo de um traço de nossa época, definido como “safetyismo” pela psicóloga Pamela Paresky. A ideia de que nos tornamos subitamente frágeis — ou, ao menos, seletivamente frágeis. E que, portanto, precisamos ser protegidos. Pelo Estado, pelas empresas, pela polícia, como agora faz a Escócia. E protegidos não apenas da violência, mas das palavras, piadas, estátuas ou personagens da Fantástica Fábrica de Chocolate.

O exemplo escocês me veio à cabeça enquanto lia o ótimo livro do cientista político Yascha Mounk, Armadilha Identitária, lançado esta semana no Brasil. O livro faz um inventário da nossa atual obsessão identitária. Em especial, envolvendo os temas de raça, gênero e orientação sexual. Mounk reconhece perfeitamente a relevância dos temas de inclusão. O problema é quando a conversa toda se torna “monomaníaca”. Seu apelo, no final, é por uma visão universalista sobre direitos. A ideia de que precisamos de normas que tratem os indivíduos “com critérios igualitários e universalmente válidos, e não com base no grupo a que pertençam”. Mounk tem uma história muito pessoal associada a essa temática. Seus avós, judeus, sofreram na carne a perseguição e o isolamento por razões de raça e religião. Daí boa parte de seu desconforto. Será que deveríamos alimentar uma cultura “separatista” de grupos de identidade? Ajustar continuamente a estrutura de direitos com base na pressão deste ou daquele segmento? Ou deveríamos navegar exatamente na direção oposta?

O livro é repleto de histórias. Com um foco: separar o joio do trigo. Distinguir o que são demandas de justiça perfeitamente legítimas e o que cruza a fronteira do que ele chama de “síntese identitária”. Um exemplo: o texto publicado pelo professor Ekow Yan­kah, no The New York Times, sob o título “Meus filhos podem ser amigos de pessoas brancas?”. Ele menciona a vitória de Trump nas eleições e diz que irá ensinar “desconfiança” a seus filhos. E mais: diz que “logo terei que discutir com eles se podem realmente ser amigos dos brancos”. O texto é de algum modo perturbador, para Mounk. Estamos dispostos a aceitar uma fratura definitiva, dada pela cor da pele, entre os cidadãos? O choque se amplia quando observa que essa mesma lógica penetrou no mundo corporativo. Ele menciona um treinamento dado pela Coca-Cola, apelando para que os funcionários tentassem ser “menos brancos”, o que significaria, segundo o manual, ser “menos opressivos”, “menos arrogantes”, “menos ignorantes”, e por aí afora.

Mounk se incomoda quando observa que, mesmo no terreno de políticas públicas, como o direito à saúde, o corte identitário e a segregação “positiva” vêm fincando raízes, em particular nos Estados Unidos. No estado de Nova York, o Departamento de Saúde sugeriu que os médicos “prescrevessem medicamentos escassos para membros de grupos étnicos minoritários”, relata Mounk. “Cidadãos brancos, em idênticas condições, não devem ser considerados uma prioridade.” De onde veio isso tudo? Mounk evita a palavra woke. Seu foco é produzir uma reflexão aberta, que possa ser feita por qualquer um dos lados de nosso mundo político. Por óbvio, há uma longa história aí. Quando Martin Luther King liderou o movimento pelos direitos civis, nos anos 60, seu foco era universalista. A ideia de viver em um país em que seus filhos “não fossem julgados pela cor da pele, mas pelo caráter”. Essa imagem marcou uma geração inteira, mas com o tempo se perdeu. O atual separatismo identitário caminha exatamente na direção contrária: seria preciso, sim, julgar as pessoas pela cor da pele e formas de identidade coletiva. O argumento alcança mesmo um tom metafísico, em um best-seller como White Fragility, de 2018, e a ideia de que “se você é uma pessoa branca, na América” (…) você é um racista, pura e simplesmente”. Um tipo de argumento perfeitamente não falseável, no sentido popperiano, segundo o qual “todos os brancos são racistas. E se você discordar, apenas prova o quanto racista você é”, provoca Mounk.

“A segregação ‘positiva’ vem fincando raízes, em particular, nos EUA”

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O que de fato dançou, no rastro da atual obsessão identitária, é o valor da liberdade de expressão. “Uma ampla parcela da esquerda americana se tornou abertamente contra o ideal da livre expressão”, diz Mounk. Isso não deixa de ser curioso. Quando Oliver Holmes criou a moderna interpretação da Primeira Emenda americana, com sua máxima de que apenas discursos que apresentassem um “perigo real e atual” deveriam ser punidos, era fundamentalmente a esquerda que defendia a liberdade de expressão. Isso foi depois do final da Primeira Grande Guerra, em 1919, quando Holmes endossou o direito de ativistas comunistas de origem russa defenderem a sua revolução e contestarem o governo americano, colocando cartazes nas ruas de Nova York. Hoje tudo parece ter mudado. A obsessão identitária diz o seguinte: não há divergência nenhuma em jogo. Há apenas uma disputa entre o erro e a verdade. E o erro deve ser calado. Ponto-final.

Talvez deva ser assim mesmo. Se a verdade de fato é dada por alguma ordem cósmica, por que o erro deveria ser tolerado? Pensando nisso me veio à cabeça uma das histórias mais curiosas que li. É a de Isabel, uma mulher católica que resolveu fazer uma oração nas cercanias de uma clínica de aborto em Birmingham, na Inglaterra. Havia uma zona de exclusão para protestos, ao redor da clínica, e um policial logo se aproximou: “Você está fazendo um protesto?”, perguntou. “Não”, respondeu Isabel, “só estou rezando na minha cabeça”. Foi presa, e o caso correu mundo. A acusação era de que aquela oração silenciosa poderia ser um tipo de “intimidação” às mulheres que realizavam um aborto. O caso foi parar no Parlamento, gerou um amplo debate e, no final, Isabel foi absolvida. A promotoria não conseguiu provar o que se passava, exatamente, dentro daquela cabeça. E como aquilo poderia ser uma forma de intimidação. Mas a imagem está lá. Me lembrei da “crimideia”, o crime de pensamento da profecia de Orwell, em seu clássico 1984. Talvez tenha sido mesmo um erro da promotoria não ir a fundo e saber o que havia naquela cabeça. Ou então tudo isso sugere um caminho perigoso, e o melhor seria retomarmos a trilha do que Mounk chama de “liberalismo filosófico”, com suas ideias de respeito à liberdade individual, isonomia diante da lei e livre pensamento. Ideias que incomodam, que vivem hoje um pouco à sombra. Mas que inegavelmente estão na base do que melhor conseguimos realizar na modernidade.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

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Publicado em VEJA de 5 de julho de 2024, edição nº 2900

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