No sermão da Montanha, Jesus proferiu frases que extrapolaram limites religiosos. “Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados”, diz ele, logo no início. A passagem transcrita nos Evangelhos é recorrente em filmes, séries e novelas cristãs (alô, Record), e encenada sempre de forma imponente, reforçando a aura messiânica e épica de Jesus. Na série The Chosen: os Escolhidos, o caminho é outro. No episódio que abre a terceira e mais recente temporada da produção, Jesus fala enquanto uma música pop com batida de R&B toca ao fundo, dando um ritmo jovial ao sermão. A câmera quase não mira o pregador: ela prefere olhar ao redor, para gente como Pedro, Judas Iscariotes e Maria Madalena. Ao fim, alguns estão extasiados, outros desconfiados, e um sincerão até sugere que a fala foi boa, mas um pouco longa. Jesus, interpretado pelo americano Jonathan Roumie, ri do crítico: em The Chosen, o Messias cristão é sereno, carismático e amigável — estratégia que aproxima o espectador da divindade. Mais acessível ainda são os demais personagens: aqui, os coadjuvantes bíblicos viram protagonistas, refletindo dilemas humanos atemporais — válidos da época de Cristo ao século XXI.
Os “escolhidos” do título são referência aos que integraram a comitiva de peregrinação de Jesus documentada no Novo Testamento. Para além dos doze discípulos, há outros personagens menos citados nas pregações de igrejas. Caso de várias mulheres, como Maria Madalena, a prostituta acometida por espíritos malignos que se tornou seguidora de Jesus. Aborto espontâneo, doenças incuráveis, dívidas financeiras e lances de violência contra a mulher perpassam o roteiro, em meio a situações cotidianas que vão desde cenas em um bar de apostas até o flerte cômico entre casais. Em um retrato peculiar, o discípulo Mateus, um coletor de impostos, deixa de ser visto como ganancioso para se encaixar no que parece ser um espectro autista — por essa razão, ele sentiria segurança ao seguir regras bem definidas, caso da Lei Romana.
Lançada em 2019, The Chosen está um degrau acima da qualidade sofrível das produções bíblicas recentes — isso, graças a uma produção cuidadosa e um roteiro que foge do óbvio. Mais curioso, porém, foi o modo como desafiou lógicas de mercado. Feita por meio de uma vaquinha virtual que levantou 10 milhões de dólares, a série, gravada no Texas, é transmitida de forma gratuita em um aplicativo que leva o nome do programa, com direito a legendas em diversas línguas, o português incluso. A explosão em audiência — são 390 milhões de espectadores — chamou a atenção das plataformas de streaming: no Brasil, a Netflix e o Globoplay exibem a primeira temporada — lá fora, a série ainda integra o catálogo do Prime Video, da Amazon. Segundo o agregador de conteúdo JustWatch, The Chosen é uma das séries mais vistas entre os brasileiros nos últimos meses — lado a lado com títulos como Succession e Ted Lasso. O lado B da Bíblia também é pop.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2023, edição nº 2844
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