Um detalhe aparentemente insignificante em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura causou celeuma entre a Marvel e o governo chinês. Enquanto o herói vivido por Benedict Cumberbatch luta contra um monstro nas ruas de Nova York, aparece, na calçada, um totem com jornais do The Epoch Times, publicação vocal contra o Partido Comunista Chinês. O detalhe – o qual a Disney ainda não explicou a razão de estar em cena – é apontado como o motivo para a longa demora da censura chinesa em aprovar uma data de estreia para o filme no país. A essa altura, a esperança é que a superprodução não entre em cartaz por lá, o que pode causar à Marvel um prejuízo de 300 milhões de dólares – ou mais.
O boicote a Doutor Estranho é apenas a cereja do bolo de uma crescente briga ideológica. O último filme da Marvel a ser lançado na China foi Vingadores: Ultimato, em 2019, que arrebanhou por lá 629 milhões de dólares. Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis, primeiro filme da Marvel protagonizado por um herói chinês, vivido por Simu Liu, foi barrado por comentários críticos do ator sobre o próprio país. Viúva Negra, acredita-se, não passou pelo crivo por sua trama contra a União Soviética e, consequentemente, anti-comunista. Outra teoria ecoa no meio: todos podem ser parte de um grande boicote da China contra Chloé Zhao. A cineasta chinesa, contratada pela Disney para conduzir o filme Eternos, disse em uma entrevista que seu país é “guiado por mentiras por todos os lados”. Logo, Chloé acabou “cancelada” por sua terra natal.
A relação do estúdio hollywoodiano e do gigantesco país oriental nem sempre foi assim – mas era de se esperar que chegaria a essa ruptura. No início dos anos 2010, a Marvel e outros estúdios americanos passaram a mudar seus roteiros para se encaixar no “padrão censura chinês”. A presença de atores chineses nos roteiros americanos aumentou, assim como gravações no país, e até edições específicas foram usadas na estratégia para conseguir uma vaga nas salas de cinema. Além do escrutínio da censura, a China ainda limita a 34 o número de estreias internacionais, com a desculpa de que prefere proteger a produção nacional – antes, o número de filmes gringos a entrar em cartaz era limitado a 20.
Era de se imaginar que essa lua de mel chegaria ao fim. Defensora de pautas progressistas, como a bandeira LGBT – tema presente no segundo Doutor Estranho e que causa arrepio à censura chinesa–, a Marvel e outros estúdios se viram diante da questão: vamos editar nossos filmes e contratar profissionais pautados pelas premissas ideológicas da China? A resposta, cada vez mais, é não – mesmo que centenas de milhões de dólares sejam sacrificados. Que assim continue.