Dentre os pontos que se destacam em Barbie — que caminha rumo ao posto imbatível de maior sucesso de 2023 —, está seu elenco diverso, que busca refletir, em contraponto à protagonista (a “Barbie estereotipada”), as recentes inovações na linha de bonecas, agora composta por diferentes tons de pele, formatos de corpo e texturas capilares. Entre as múltiplas figuras de plástico, carne e osso, porém, uma se destaca para além do filme: a “Barbie médica”, de longos cabelos ruivos e um hobby de DJ, é vivida por Hari Nef, 30 anos, atriz transgênero que fez questão de integrar o filme não apenas pela afeição à história, como pelo significado da boneca para sua comunidade.
Atriz, modelo e escritora, Nef é natural da Pensilvânia, e se graduou em teatro pela Universidade de Columbia em Nova York. Formada, ela foi logo notada pelo grande público no mesmo ano, 2015, por meio do seriado Transparent, sobre uma família abalada pela transição de gênero de seu patriarca. Na ocasião, ela interpretou a personagem Tante Gittel, uma antepassada pioneira da protagonista que havia vivido como mulher trans durante o período entre a República de Weimar e a ascensão do nazismo na Alemanha. Logo depois, iniciaria sua parceria com o roteirista e cineasta Sam Levinson com o longa País da Violência, colaboração que repetiria anos depois na polêmica minissérie The Idol.
No meio-tempo, não deixaria os palcos para trás, participando de peças de dramaturgos americanos renomados como Jeremy O. Harris e Thomas Bradshaw, equilibrando papéis ligados à causa trans com trabalhos desconectados a sua identidade pessoal. Tudo isso, ao mesmo tempo em que conquistava marcos no mundo da moda: Hari é a primeira mulher trans a ter contrato assinado com a agência IMG, de supermodelos como Bella e Gigi Hadid.
Mais surpreendente que qualquer feito de sua imagem, porém, é sua aptidão para a escrita e análise cultural, que emprega em críticas de cinema postadas na rede Letterboxd, além de perfis e colunas que já assinou. Na hora de conquistar seu lugar em Barbie, foi este talento o seu diferencial. Contratada após o processo de audições, ela teria que abandonar o projeto devido a conflitos de agenda, mas, para convencer a diretora Greta Gerwig a mantê-la, decidiu escrever uma carta, a qual compartilhou parcialmente em suas redes:
“Este é um filme grande, feito por um time cujo trabalho muito alimentou meu amor por sentar no escuro em frente a grandes telas ao longo de uma ou duas horas, mas esta é apenas uma parte pequena do porquê quero — meu coração diz ‘preciso’ — participar da criação deste longa. Políticas identitárias e cinema não são minha combinação favorita, mas o nome ‘Barbie’ paira sobre toda mulher americana. Barbie é o padrão, ela é ‘a garota’, e, certamente, ‘a boneca’. Eu e minhas amigas trans começamos a nos chamar de ‘bonecas’ alguns anos atrás, apesar da gíria ser tão antiga quanto o cenário do ballroom. Talvez o termo procure retificar nossa feminilidade, para sorrir e ironizar os padrões exigidos às mulheres. É uma piada, claro — exclamamos dramaticamente: “as bone-e-cas!” Mesmo assim, sob a palavra está o formato de uma mulher que não pode ser chamada exatamente de ‘mulher’ — reconhecida como uma, sim, mas ainda uma farsa. “Boneca” é uma ideia robusta e glamourosa, ela é e não é. Nos chamados de “bonecas” face a tudo que sabemos ser, o que nunca seremos e o que esperamos ser. Gritamos a palavra, pois ela importa — e nenhuma boneca importa mais que Barbie.”
Funcionou, e assim Hari conseguiu dar vida à Barbie Médica, que, apesar de não ser humana — e, logo, não uma mulher trans — chega a acenar a símbolos da comunidade quando comanda a cabine de DJ da discoteca da Barbielândia, remetendo diretamente a ícones como Sophie Xeon, Arca e Wendy Carlos, visionária da música eletrônica e primeira trans a vencer um troféu Grammy, em 1970. Mais que sua personagem, o arco narrativo do longa reflete a carta escrita pela atriz à cineasta, e os paralelos entre a autodescoberta da Barbie de Margot Robbie e a identificação descrita por Nef são fáceis de traçar.
Dado o tremendo sucesso do filme, o futuro da atriz em Hollywood parece promissor, e já tem próxima parada: como protagonista, ela viverá Candy Darling, musa de Andy Warhol e ícone trans da década de 1970, em uma cinebiografia escrita por Stephanie Kornick, de Transparent, papel que descreve como “a honra absoluta” de sua vida e um sonho de longa data, que já suplicava há anos em suas redes pessoais. Ao que tudo indica, de todos seus talentos, moldar a realidade é o maior.