Quando David Fincher fez Seven — Os Sete Crimes Capitais, em 1995, a trama sobre um macabro serial killer chocou o público e selou o destino do cineasta americano. Dali em diante, ele estaria fadado a tecer histórias criminais conduzidas por maníacos homicidas e detetives obsessivos. Assim, sucederam-se Zodíaco (2007), Millennium: os Homens que Não Amavam as Mulheres (2011), Garota Exemplar (2014) e, mais recentemente, a série Mindhunter. Após alguns anos afastado do gênero, Fincher retorna ao crime com O Assassino, que chega aos cinemas na quinta-feira 26.
Protagonizado pelo alemão Michael Fassbender, o filme começa em Paris, onde o Assassino do título — assim mesmo, sem nome designado — se prepara ao longo de dias para balear seu alvo da vez. Meticuloso e pragmático, ele calcula cada variável e dispensa o remorso — tudo, curiosamente, enquanto ouve The Smiths. Mas, na hora decisiva, erra o tiro. Frustrado e confuso, volta para casa e descobre que seus contratantes a invadiram e, no caminho, agrediram sua namorada — vivida pela brasileira Sophie Charlotte, em ponta curtíssima mas marcante. Tomado por sede de vingança, o matador de aluguel então passa a caçar seus algozes pelo mundo.
No caminho, ele esbarra com um advogado fraudulento, um brutamonte genérico, um bilionário patético e uma Tilda Swinton — intérprete de uma assassina, digamos, filosófica que perpetra um curioso monólogo em cena. Os alvos, porém, são meros adornos da narrativa, que se vale de seis capítulos e um epílogo para passear por diferentes locações e conflitos — cada qual com uma subtrama à parte, todas igualmente ancoradas no carisma e sarcasmo de Fassbender.
O Assassino, afinal, não é um filme de investigação ou sobrevivência na linha de outros de Fincher, e sim uma história que se vale do humor irônico e da estrutura rígida para caçoar da hierarquia contemporânea, e gradualmente desconstruir o pragmatismo de seu protagonista, como quem tenta convencer um viciado em trabalho a tirar férias. O resultado é, surpreendentemente, um dos trabalhos mais leves e divertidos do diretor, que circunda a violência explícita com humor calcado na figura insólita de seu protagonista — um pistoleiro que exibe um improvável figurino havaiano.
A modéstia e a irreverência se contrapõem à ambição excessiva dos últimos trabalhos do cineasta — como o pretensioso Mank. E é muito bem-vinda. Nesse novo passo de sua parceria com a Netflix, que vai até 2024, Fincher prova que, de vez em quando, um bom prato de arroz com feijão faz bem até para diretores complexos.
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2023, edição nº 2864