No coração de Paris, John Wick protagoniza uma sequência tão surreal que nem dá tempo de racionalizar o que se passa na tela. É só emoção na veia, e basta: o matador profissional é perseguido por uma corja quase infinita de mercenários, dirige em alta velocidade no Arco do Triunfo, troca tiros com os desafetos e, após bater o carro, ainda encara cenas de luta coreografadas com dezenas de figurantes, enquanto desvia de centenas de carros no trânsito caótico da capital francesa. Sem respirar, parte para um duelo contra o seu novo inimigo, o Marquês de Gramont (Bill Skarsgård), mas, no caminho, tem de atravessar uma escadaria permeada de assassinos ansiosos por aniquilá-lo. Como de praxe, o personagem celebrizado por Keanu Reeves se safa de tudo de modo espetacular. O resultado é um rastro de corpos e destruição — e a constatação de que o thriller John Wick 4: Baba Yaga (Estados Unidos, 2023), que estreia no país na quinta-feira 23, consegue mais uma vez cumprir a meta a que o diretor Chad Stahelski se propôs e vem cumprindo com diligência desde o início da franquia: provar que sempre é possível levar a pancadaria a novos patamares de elaboração e potência.
Não há no cinema atual, enfim, personagem que seja páreo para o anti-herói de Keanu Reeves na missão de manter vivo o mote fundamental da ação — menos papo e mais adrenalina, por favor. Ao seguir essa regra à risca, temperando o pacote com humor afiado e referências às tramas orientais de artes marciais, os filmes de John Wick arrastam multidões às salas de cinema. Os três primeiros — De Volta ao Jogo (2014), Um Novo Dia para Matar (2017) e Parabellum (2019) — acumularam receita de 585 milhões de dólares (ou 3 bilhões de reais). A saga nasceu com baixo orçamento, fazendo pirotecnia com técnica e conhecimento de causa — ex-dublê de Reeves em Matrix, Stahelski sabe como potencializar cada movimento e nuance de um astro por si já tão calejado no gênero, de Velocidade Máxima à própria série Matrix.
No terceiro filme, lançado ainda antes da pandemia, Stahelski anunciava que o carrossel estonteante de Parabellum seria só o prelúdio de uma guerra — e entrega o que promete na nova sequência. No folclore eslavo, baba yaga é um ser sobrenatural que ceifa suas vítimas de surpresa. E Wick faz jus aqui a seu epíteto: dispensando dublês em boa parte do filme, Reeves transita com naturalidade entre diálogos tensos e lutas virtuosísticas.
A entronização de Reeves como salvador da ação contém sua dose de ironia. Na vida pessoal, o astro passa a imagem mais zen possível: é um sujeito discreto e todo “gente como a gente” quando dá as caras em eventos de Hollywood ou nas passagens pelo Brasil. “Gosto da minha privacidade, ninguém precisa saber o que eu estou fazendo sempre”, disse o ator a VEJA (leia abaixo). Sua trajetória de vida é singular. Nascido no Líbano, ele é filho de uma dançarina de boate que engravidou de um sino-americano que passava pelo país. Após dois anos, viu o pai abandonar a família por causa de vício em drogas e álcool. Aos 5, se mudou com a mãe e a irmã para Nova York, e depois Canadá, onde começou a estudar teatro. Interessou-se por hóquei na adolescência, mas as notas baixas o impediram de seguir carreira, restando a arte como consolo. Após garimpar papéis pequenos no teatro e na TV, ele se instalou na Califórnia em busca do sonho de atuar. Em 1994, veio Velocidade Máxima — o resto é história.
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No auge da carreira, porém, uma tragédia pessoal dupla o abalou: em 1999, sua filha com a atriz Jennifer Syme nasceu morta. Em 2001, Jennifer sofreu um acidente de carro — e não sobreviveu. Com um passado tão complexo, o ator acabou se fechando e criando uma aura mística em seu entorno. Só em 2019, após duas décadas de discrição, Reeves assumiu seu relacionamento com a artista plástica Alexandra Grant. Se John Wick bate e arrebenta, seu intérprete nada mais quer que uma vida tranquila — mas, bem, ele é o Keanu Reeves.
“O filme exigiu todo o meu físico”
Em entrevista a VEJA, Keanu Reeves falou sobre os desafios de John Wick 4: Baba Yaga, vida pessoal e carreira.
John Wick contém humor, como é tendência na ação atual — mas parece mais interessado em trazer o gênero de volta às raízes, confere? Acho que não ficamos a dever no humor: já tivemos até uma luta de facas que mais parecia guerra de bolas de neve. E diálogos engraçados. Mas concordo sobre fazer esse retorno às raízes da ação e da narrativa. Temos mais luta e menos conversa.
Os outros três filmes da saga são sobre vingança, seja por matarem o cachorro dele, seja por roubarem seu carro. Como define a motivação de John dessa vez? Agora ele está procurando por liberdade e paz. Mas ainda tem muita gente querendo matá-lo, então ele está tentando sobreviver. Neste novo filme, buscamos refletir sobre regras e consequências, escolhas e seus resultados. Questionamos, enfim, as motivações das pessoas.
Como é protagonizar tantas cenas de lutas coreografadas e arriscadas, dispensando o uso de dublês em boa parte delas? Baba Yaga é uma experiência cinematográfica intensa, e tem cenas feitas por drones. Eu diria que foi o filme mais difícil nesse sentido na minha carreira, exigiu todo o meu físico.
O senhor veio inúmeras vezes ao Brasil. O que o atrai aqui? As pessoas que conheci aqui foram ótimas, têm dignidade, paixão e força. E acho a cidade de São Paulo muito especial, porque concreto e selva parecem negociar espaço, mas harmoniosamente.
Como estrela de Matrix (1999), um filme que revolucionou a ficção sobre o mundo virtual, viu sua relação com a tecnologia mudar? Sim, a tecnologia a que fui exposto ao fazer Matrix foi legal, porque eram os primeiros dias da imagem digital moderna, que agora está virando realidade virtual e aumentada. Estão desenvolvendo o metaverso, e isso só mostra a força da tecnologia em influenciar a cultura e a comunicação.
Por que mantém discrição sobre sua vida pessoal na era das redes? Gosto da minha privacidade. Eu conheço pessoas na rua o tempo todo, mas ninguém precisa saber o que eu estou fazendo a cada minuto.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2023, edição nº 2833
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