Emmanuèle (Sophie Marceau) já ouviu de tudo do pai temperamental, desde xingamentos explícitos e críticas disfarçadas de elogios até demonstrações de afeto que lhe garantiram o selo de filha favorita — competição inexistente entre ela e a irmã, mas alimentada pelo patriarca. Nessa relação de altos e baixos, Emmanuèle não esperava o sussurro ao pé do ouvido no qual o pai, debilitado após sofrer um AVC, pede a ela com calma impassível: “Quero que você me ajude a morrer”. Ao longo de Está Tudo Bem, filme do francês François Ozon, já em cartaz nos cinemas, Emmanuèle é questionada por diferentes pessoas sobre a razão pela qual não negou o pedido. “Ninguém diz não ao meu pai”, responde, resoluta.
Francois Ozon (Contemporary Film Directors)
Assim como tantos temas delicados e de profundidade abismal, a eutanásia é costumeiramente reduzida a abordagens maniqueístas: ou se é contra ou a favor dela. Ozon foge dessa armadilha. Com olhar clínico para examinar o corpo humano, habilidade que já usou para falar de erotismo ou decadência física em seus filmes, aqui o cineasta observa um homem outrora vigoroso que, aos 85 anos, perdeu sua independência — e, logo, sua dignidade. Sem um diagnóstico terminal e amparado por cuidados que só os mais ricos podem pagar, ele vê na controversa opção de encerrar a vida não uma desistência, mas uma forma de recuperar sua integridade.
Interpretado com força acachapante por André Dussollier, o pai — que também se chama André — é uma figura peculiar. Um abastado colecionador de arte que vai da melancolia à rispidez sem mudar de marcha, ele provoca nas filhas uma montanha-russa de sentimentos. Seu desejo de morrer acentua o amor e o ódio dessa relação, e ainda as põe diante de uma série de burocracias. Na França, a eutanásia é proibida. Emmanuèle busca uma instituição de suicídio assistido na Suíça. O país é o único onde a eutanásia é legal para pessoas não terminais — e exige que as próprias estejam em condições de tomar sem ajuda a substância que encerra a vida.
O drama é baseado na história da romancista Emmanuèle Bernheim, amiga de Ozon e filha do magnata André Bernheim — o qual pôs a família diante de dilema semelhante em 2009. No filme, o processo leva meses e cria esperanças: conforme o pai melhora e se acostuma às restrições físicas, as filhas esperam que desista de morrer. André sorri quando um jovem enfermeiro tenta dissuadi-lo, dizendo que “a vida é bela”. Para ele, no entanto, o fim também tem sua beleza.
Publicado em VEJA de 8 de junho de 2022, edição nº 2792
*A Editora Abril tem uma parceria com a Amazon, em que recebe uma porcentagem das vendas feitas por meio de seus sites. Isso não altera, de forma alguma, a avaliação realizada pela VEJA sobre os produtos ou serviços em questão, os quais os preços e estoque referem-se ao momento da publicação deste conteúdo.