O sol na janela anuncia a chegada de um novo dia. Na cama simples, uma mulher luta contra a dor para se levantar. Quando olha para baixo, nota as pernas cobertas de hematomas e sangue no lençol, mas não tem memória da noite anterior. “O que você verá a seguir é um ato de imaginação feminina”, alerta a introdução de Entre Mulheres (Women Talking, Estados Unidos, 2022), filme já em cartaz nos cinemas. A frase em um primeiro momento parece pôr em xeque a versão da personagem, mas é uma cruel ironia: na trama adaptada do livro homônimo da canadense Miriam Toews, as mulheres de uma comunidade religiosa isolada em um lugar indefinido (mas que se assemelha ao país da autora) são drogadas e estupradas por anos enquanto dormem. Quando um dos agressores é capturado, elas descobrem que os ataques não são obra do demônio ou “fruto da imaginação feminina”, como foram levadas a acreditar, mas dos homens locais.
Indicado a filme do ano e roteiro adaptado no Oscar, o impactante Entre Mulheres reforça a leva de longas que introduzem complexidade incômoda nas tramas sobre abuso na esteira do #MeToo. Ao contrário de obras como Tár ou Ela Disse, que usam as relações profissionais para falar sobre o tema, aqui a fonte da opressão não é uma pessoa em posição de poder, mas o fundamentalismo religioso.
O filme examina o modo perverso como a violência sexual pode se imiscuir num ambiente de fé. Enquanto os homens da comunidade vão para a cidade pagar a fiança dos réus confessos, e trazê-los de volta para casa, resta às mulheres que não aceitarem o retorno deixar o local. Abaladas, elas organizam uma votação com três opções: não fazer nada e perdoar; ficar e lutar por justiça; ou abandonar o único lar que conhecem. Quando um empate se desenha entre a luta e a fuga, um grupo se reúne secretamente para debater alternativas e selar o destino de todas.
Filosófico e com tom reflexivo, o filme se passa quase todo dentro de um estábulo, onde diálogos de fundo teológico deixam entrever o papel da defesa religiosa da submissão feminina nos abusos. O isolamento é tamanho que o espectador só desperta para o fato de que o filme se passa no mundo atual, e não na Idade Média, quando um carro passa pela estrada local. O contraste expõe uma realidade dolorosa: longe de qualquer avanço moderno e criadas sob um patriarcalismo extremo, as personagens não têm sequer conhecimento para se libertar. Impedidas de ler ou escrever e sem nunca ter visto um mapa na vida, precisam recorrer a August (Ben Whishaw), o único homem que ganha destaque no longa, para tomar notas das reuniões e ensiná-las o básico para cair na estrada caso essa seja a decisão final.
Pior do que a ignorância involuntária, porém, é a luta contra a própria consciência e o medo de ficar de fora do reino dos céus — afinal, perdoar seus algozes é o que faz um bom cristão. Na ânsia de decidir seu destino, cada uma assume uma postura distinta, e três personagens com atuações primorosas se destacam como arquétipos da reação ao trauma. Salome (Claire Foy) abraça a raiva e está disposta a tudo por justiça, mesmo que isso a condene ao fogo do inferno. Mais contida, Ona (Rooney Mara) quer deixar a dor no passado e buscar uma nova vida, enquanto Mariche (Jessie Buckley) se equilibra na corda-bamba entre o amor pelo único lar que conhece e as feridas que o local abriu em cada uma delas.
Mulheres que correm com os lobos
Tais horrores, infelizmente, não são pura ficção: a história é livremente inspirada num caso que aconteceu na Bolívia, em uma comunidade menonita ultraconservadora. Entre 2005 e 2009, centenas de mulheres foram dopadas com um anestésico veterinário e estupradas durante o sono. Por anos, elas acreditaram que os ataques eram perpetrados por demônios ou, simplesmente, fruto da imaginação feminina, como ironiza a diretora e roteirista Sarah Polley no longa. No total, 130 vítimas, entre 3 e 65 anos, foram reconhecidas no processo que condenou oito homens em 2011. A realidade pode ser tão cruel quanto a ficção.
Publicado em VEJA de 8 de março de 2023, edição nº 2831
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