Aos 70 anos, a atriz Vera Holtz relança em algumas sessões especiais do cinema As Quatro Irmãs (2019), filme documental dirigido por Evaldo Mocarzel no qual a artista revisita memórias da infância ao lado de suas três irmãs, Tereza, Rosa e Regina. Entre traumas e lembranças afetuosas, Vera atua de forma tocante ao interpretar seus pais e as próprias irmãs em algumas das cenas. A atriz falou a VEJA sobre o processo criativo da obra e revelou uma situação inusitada nos bastidores, envolvendo uma menstruação aos 63 anos.
O longa As Quatro Irmãs será exibido em sessões únicas com a presença da atriz para um bate-papo após a exibição em 29 e 30 de agosto no Rio de Janeiro e em Niterói, respectivamente, e também está disponível nos serviços on demand da Claro TV+ e Vivo Play. Em breve, o título entra nos catálogos da Apple TV e da Google TV.
As Quatro Irmãs faz um resgate tocante sobre a sua infância e a sua família, e a senhora discorre sobre os truques da memória com o passar do tempo. Qual seria a causa disso? Eu sempre tive uma questão com memória, porque essa coisa de gravar muito, cada hora estar em um lugar, interpretando um personagem diferente afetou muito a minha memória. No filme eu acordo e não sei se tô no Rio, São Paulo, Mongaguá. E preciso de um tempo para me localizar. E sempre tive problema com a minha memória real, porque vivi durante muito tempo no mundo do ficcional.
Como é revisitar os traumas da sua infância, principalmente episódios de violência envolvendo seu pai, que chegou a agredi-la quando menina? É engraçado quando você começa a tocar em algumas memórias e determinados assuntos. Quando começamos a fazer o filme, eu não tinha a menor ideia de que aquilo estava ainda latente em algum lugar daquela Vera Lúcia. E decidimos falar sobre isso porque é importante, também faz parte da Vera Lúcia. É óbvio que minha relação com papai, depois, foi maravilhosa, ele me ensinou a ter independência, falava: ‘Primeiro se forma, depois casa’. Ele sempre foi um homem bem pra frente criando quatro mulheres. Queria nos dar autonomia, mas, quando a gente começou a discutir sobre isso, vi que ainda tinha algumas questões que de alguma forma alavancaram a minha vida. Saí de Tatuí para viver em outro lugar, porque você não quer viver sob essa família austera, mas amorosa, que é a minha família. Então eu não queria mais viver sob aquele guarda-chuva do Zé Carlos (pai da atriz), que me proibia de fazer as coisas. Ele tentava, de alguma forma, moldar aquela criança. E não acho que era possível moldar aquela menina. E é louco pensar que meu pai, para mim, para Rosa, Tereza e Regina, são pais diferentes, porque cada uma de nós teve um ponto de vista sobre aquela figura paterna.
E sobre a sua mãe? Ela também brigava bastante com a senhora, certo? Mas mãe a gente sempre perdoa, né? A minha era uma italiana divertida e muito presente, ficava em casa com a gente.
A senhora também reflete sobre a maternidade e o matrimônio de uma forma melancólica e serena. Se arrepende de não ter se casado nem se tornado mãe? Filho eu nunca quis ter mesmo, mas, quando a gente fez esse documentário, tivemos um fenômeno, não sei se porque eu estava fazendo reposição hormonal ou não na época, mas eu realmente menstruei, aos 63 anos — época em que filmamos. Eu estava na cozinha, fazendo uma cena de diálogo com meus pais, e isso irrompeu em uma menstruação, começou a pingar sangue. Mas o que foi interessante naquele momento foi entender do feminino, da menstruação, do que nos diferencia. O fato óbvio de que uma pessoa que menstrua tem óvulos, filhos, continuidade, ancestralidade. Eu casei várias vezes, mas não oficialmente, sem repetir o comportamento-modelo de mulher, sempre rompi com isso. Mas não porque eu queria, e sim porque era da minha natureza curiosa, de sempre partir, sanando uma curiosidade gigantesca que até hoje eu tenho.
A senhora gosta de fazer publicações artísticas nas redes sociais, mas deixou de fazê-lo desde janeiro. Por quê? Eu parei de postar porque comecei a fazer uma peça chamada Ficções e, quando você muda a sua plataforma – é muito doido isso –, porque o teatro me absorveu de tal forma, e eu não tava em São Paulo, fiquei viajando para o Rio e para Belo Horizonte. Em São Paulo eu tenho um espaço de criação e produção. Então eu não tinha esse lugar, mesmo que eu tivesse a ideia, não tinha lugar pra produzir, porque tava em trânsito e viajando pelo mundão. A energia de viagem é muito forte, de uma peça também, ainda mais uma peça que fala de homo sapiens. Então foi uma mudança só de plataforma, de criação. Daqui a pouco volto a fazer. Comecei a fazer as fotos para o Instagram na mesma época do filme, eu tava começando a remexer esse lugar das artes plásticas, da Vera Lúcia, da minha formação em artes plásticas.
O Brasil perdeu a grande Aracy Balanabian, e as senhoras eram amigas. Como foi sentir essa perda? É curioso porque foi no dia do meu aniversário. Eu fiquei primeiro em silêncio. A Aracy era uma pessoa tão alegre, brincalhona, e nós duas tínhamos uma coisa, quando estávamos juntas a nossa energia tinha uma vibração diferente, boa, de brincar. E a Aracy sempre falava: ‘E a vida continua’. Ela levantava os braços quando acordava e falava: ‘Eu quero ir embora, mas a vida, a vida continua’. Aí, conversando com ela, no meu coração, pensei que só posso oferecer para ela a nossa alegria, que foi o que vivemos juntas, sempre. Eu visitava a Aracy quando estava no Rio, éramos muito amigas. Então fiquei supersentida. Foi um dia para entender que a vida continua. Dedicamos a sessão de Tatuí a ela e à minha irmã Tereza, que também já partiu deste plano.