Dois fantasmas assombram a eleição presidencial de 2022: a reedição por mais quatro anos de um governo ruim com tentações autoritárias e a derrota desse mesmo governo com as consequências arquitetadas e anunciadas pelo candidato presidente de atear fogo às vestes da legitimidade do pleito, alegando fraude no sistema eletrônico de votação.
Um moinho de vento, mero pretexto para armar confusão, mas contra o qual é preciso o país estar atento, forte, de olho vivo e com todos os botões de faro fino acionados. Aqueles mesmos atributos que boa parte dos analistas da cena política deixamos de lado em nome de uma suposta complexidade de um jogo que não deveria nem poderia ser vencido pela simplificação da realidade brasileira, mas foi.
Está feito, mas pode ser desfeito. A boa notícia é que o presidente Jair Bolsonaro não é tão esperto quanto pensa. Fosse, não teria mostrado as armas com tanta antecedência nem exposto sua estratégia com clareza tal a ponto de dar tempo e criar espaço para reação.
Note-se, não se fala aqui de reagir a possível vitória no voto do postulante à reeleição. Se ganhar, ganhou, e nada haverá a fazer a não ser vigiar a manutenção do governante nos limites constitucionais com espírito atuante, diligente e consciente de que impeachment não é golpe se conduzido dentro dos preceitos legais. Assim foi com Dilma Rousseff, não obstante o golpe na Carta aplicado pela dupla Ricardo Lewandowski/Renan Calheiros na preservação dos direitos políticos da presidente impedida.
A situação popularmente conhecida como aquela em que a porca torce o rabo estará criada em caso de derrota, conforme o próprio Bolsonaro fez questão de antecipar vaticinando que “algo pior” que a invasão bárbara ao Capitólio dos Estados Unidos acontecerá no Brasil se em 2022 não for adotado o voto impresso.
À lógica peculiar do presidente não ocorreu que Donald Trump perdeu em sistema de cédulas de papel nem que ele, Bolsonaro, tanto pode perder no impresso quanto ganhar de novo no eletrônico, o que derruba sua argumentação já na premissa. Mas não percamos tempo cobrando abundância de encadeamento coerente de palavras e pensamentos onde impera a escassez desse material, e vamos em frente para outro ponto importante no embate entre o novo anormal e o velho normal.
“Olho vivo e faro fino do mundo institucional impedirão Bolsonaro de atear fogo à eleição”
Diz respeito a um raciocínio muito em voga nestes tempos segundo o qual é sinal de sagacidade fazer pouco do funcionamento das instituições. Tal atitude aponta, mas, assim como Bolsonaro e Trump em relação às fraudes, não apresenta provas da existência de uma disfuncionalidade institucional que fugiria à percepção dos desprovidos de tirocínio político.
Falta senso de realidade nesse tipo de análise. Parte do princípio correto de que uma democracia se põe em risco quando o comando do Poder Executivo está nas mãos de uma personalidade retrógrada e de formação ditatorial. Claudica, contudo, na conclusão apressada de que caminhamos inexoravelmente rumo à volta da ditadura.
Esse tipo de interpretação, longe de fortalecer, enfraquece a confiança geral nas instituições, essencial à manutenção da sociedade em permanente estado de estreita vigilância e capacidade de reação ao êxtase autoritário que, sim, é real por aqui. Não se nega isso. O que não se pode é entregar os pontos de antemão e ignorar que a correlação de forças hoje favorece os preceitos democráticos e está a léguas de distância daquela que permitiu a implantação do regime que faria o Brasil mergulhar no terror a partir de 1964.
A zombaria de viés supostamente inteligente à ideia de que as instituições estão funcionando é prima-irmã do menosprezo à moderação expresso no desdém aos chamados “isentões”. Os fatos atuam no sentido oposto: além de nas últimas eleições ter prevalecido o valor do comedimento sobre a exacerbação, o presidente da República e companhia só fazem perder uma atrás da outra para as instituições.
Não fosse assim, o Supremo Tribunal Federal teria sucumbido às diversas ameaças, o Congresso estaria dominado tendo aprovado a tal agenda de costumes, o Ministério Público quedaria de mãos amarradas e cordas vocais canceladas, a Polícia Federal parada, a oposição calada, a imprensa intimidada, os governadores e prefeitos inertes sem reclamar à espera das ordens de Brasília e todos dizendo amém às ladainhas de Bolsonaro.
Não significa que se deva subestimá-lo, mas quer dizer que não se pode deixá-lo correr solto. Isso já se fez em 2018.
Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA
Publicado em VEJA de 20 de janeiro de 2021, edição nº 2721