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Agora é cinza

O fracasso dos intentos autoritário não quer dizer que o governo Bolsonaro não tenha imposto grandes malefícios ao nosso país

Por Dora Kramer Atualizado em 4 jun 2024, 14h09 - Publicado em 26 jun 2020, 06h00
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  • Nada como os fatos. No devido tempo deram razão à percepção de que eram infundados os temores sobre a possibilidade de Jair Bolsonaro golpear a democracia ao molde venezuelano, a fim de governar a plenos e absolutos poderes. Em um ano e meio, de maneira mais acentuada nos últimos quatro meses, o presidente, filhos e súditos passaram de intimidadores a intimidados.

    Sinal eloquente do retraimento típico de gente acossada foram a suspensão do espetáculo, em duas sessões diárias, na porta do Palácio da Alvorada e a ausência do presidente nas performances dominicais nas cercanias do Palácio do Planalto logo após a prisão de Fabrício Queiroz.

    O presidente & filhos foram acometidos de um súbito gosto por modos razoáveis, enquanto aqueles ministros ditos ideológicos perderam a loquacidade. Faz algum tempo que Damares e Araújo já não dão vazão em público a suas ideias reacionárias. Os ativistas do extremo digital reduziram drasticamente sua presença nas redes e trataram de apagar vídeos no YouTube para eliminar rastros e não facilitar a coleta de provas nas investigações acerca dos patrocínios e da organização de atos atentatórios à verdade e à Constituição.

    Não foi preciso nada além da estrita observância das normas em vigor e do repúdio social aos abusos por eles mesmos cometidos para que lhes fosse cortado o fornecimento de oxigênio. Consideram-se injustiçados, vítimas de perseguição, ignorantes que se mostram a respeito de uma pergunta retórica que Sigmund Freud registrou na história da psicanálise: “Qual a sua responsabilidade na desordem da qual se queixa?”. A resposta é de essencial utilidade para uma correção de rumos.

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    Bolsonaro pode não estar perto de perder o mandato, mas já perdeu a condição de abalar Bangu (sem referência outra, só força de expressão) com a estridência de suas cordas vocais. Dizem que a luz do sol é o melhor detergente. Aqui a substância responsável por imprimir clareza ao cenário tem sido o olho e as mãos da lei.

    Não são fortes o bastante para impedir o retrocesso civilizatório cujas bases foram plantadas nos governos do PT com o menosprezo do então presidente Luiz Inácio da Silva pela educação formal, pelo uso correto do idioma e pelo respeito à ética na política e com a introdução da dinâmica do “nós contra eles” na sociedade, e seriamente agravados por Bolsonaro. Mas, se é real a ocorrência do atraso, é verdadeira também a consolidação dos mecanismos de contenção a ilegalidades. Vários deles, diga-se, reforçados na era petista.

    “Bolsonaro e companhia passaram do papel de intimidadores à condição de intimidados”

    Jair Bolsonaro não contava com o peso dessa engrenagem na imposição de limites ao exercício do poder. Felizmente é com esse aparato legal que o país conta para dissipar apressadas e inapropriadas comparações com o regime de Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Lá, Judiciário, Legislativo e Forças Armadas foram tomados de assalto como pré-requisito para transformar a Venezuela numa democracia de fancaria. Aqui, fica a cada dia, a cada fato, a cada reação mais patente: isso é impossível.

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    Portanto, que se recolham de um lado esperanças e de outro temores. Não vai ter golpe. Entre os motivos já explicitados, porque o candidato a golpista está identificado e queda-se refém dos próprios blefes. A cada dobra de aposta nesse jogo o presidente perde mais espaço no tabuleiro onde se posicionam as instituições, a massa crítica de setores organizados e a maioria da sociedade, conforme atestam as pesquisas de opinião.

    O fracasso dos intentos autoritários, contudo, não significa que esteja tudo bem. Não quer dizer que o governo Bolsonaro não tenha imposto grandes malefícios ao nosso país. Impôs enormes. Em decorrência do já citado retrocesso civilizatório tivemos o prejuízo das vidas perdidas por causa da atitude negacionista em relação à pandemia, a perda de importância no campo diplomático, os monumentais riscos ao comércio exterior e aos investimentos devido ao desprezo pela preservação do meio ambiente e à depreciação de questões relativas a direitos humanos. O Brasil era um, hoje é outro bem pior aos olhos do mundo, motivo de piadas e lamentações.

    Assalta-nos, então, a dúvida: a situação tem remédio ou remediada está? Nenhuma das duas hipóteses. Para a segunda, que implicaria o impedimento, ainda não se encontrou um caminho eficaz. Para a primeira, dependeríamos de uma mudança radical nos atos e no pensamento de Jair Bolsonaro, num repente transmutado em líder. Resta, portanto, o aguardo de um milagre.

    Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

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    Publicado em VEJA de 1 de julho de 2020, edição nº 2693

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