Quanto mais apreço demonstra pelo autoritarismo, mais Jair Bolsonaro se enfraquece em seu modo burlesco de governar. Muito dessa desidratação muscular se deve ao sangue-frio das instituições na reação às repetidas agressões constitucionais cometidas pelo presidente.
A construção de um ambiente que inevitavelmente culminará em algum momento na decretação da falência total do poder do presidente é paulatina, mas inexorável. Enquanto Bolsonaro atua a sangue quente, obrigando-se a encenar recuos táticos, a reação a ele avança gradativamente, sem açodamentos. Bolsonaro perde consistência e as instituições acumulam forças, como convém ao bom combatente.
Reclama-se aqui e ali por demonstrações de repúdio mais incisivas, argumentando-se que declarações, manifestos, abaixo-assinados e posicionamentos em redes sociais não têm a eficácia necessária para conter o presidente.
De fato, nada disso é capaz de enquadrá-lo aos limites da normalidade, mas é de se perguntar o que nessa altura dos conturbados acontecimentos teria esse condão. O início de um processo de impeachment neste momento parece ser tudo o que Bolsonaro gostaria. Para “provar” que sofre ofensiva golpista e, assim, se autorizar a uma luta livre ao arrepio do respeito a regras.
Fora do impedimento não há recursos possíveis para uma solução definitiva. No campo da legalidade e da racionalidade, a fim de que não se cometa a estúpida estratégia de levar a coisa para o terreno predileto, por familiar, de Jair Bolsonaro.
No atual cenário, o que se tem em termos de resistência ao arbítrio não é pouco
Respostas “à altura” são mais fáceis de propor do que de executar com eficácia. Nas atuais circunstâncias, o que se tem em matéria de resistência não é pouco. A começar pelo clima de mais que relativa unidade nacional onde antes imperava a dicotomia dos polos. Um passo da maior importância foi dado com a abertura de inquérito no Supremo Tribunal Federal para descobrir quem organizou o ato em prol de regime de arbítrio ao qual o presidente deu aval com sua presença. Não figura entre os suspeitos, mas a possibilidade de as investigações chegarem muito perto dele é algo concreto, assim como o prazo de trinta dias que a Câmara deu a Bolsonaro para exibir o teste da Covid-19. Ele vai enrolar, mas a cobrança mostra movimentação em jogo.
Se não lhe serve de alerta, as posições de governadores, prefeitos, entidades civis, além das repetidas derrotas no Supremo e no Congresso, deveriam servir. Uma das mais recentes deu a medida do apoio do presidente na Câmara, quando conseguiu reunir apenas setenta votos a favor do governo no pacote de ajuda a estados e municípios, num colegiado de 513 deputados.
É sabida a ineficácia da tentativa de cooptação individual de adesões. Rodrigo Maia tem respaldo na Casa e ainda sete meses de mandato. Contra os quais o berreiro da “conspiração” nada pode de efetivo. Nem mesmo eleger um aliado para o posto. É o preço do menosprezo à formação de maioria parlamentar.
Se o presidente da República nada pode contra o presidente da Câmara, a recíproca não é verdadeira. Nas mãos deste está a espada do impeachment a pender sobre a cabeça daquele, na dependência do acúmulo de passivos. No momento produzidos com rude afoiteza de um lado e paciente destreza de outro.
Publicado em VEJA de 29 de abril de 2020, edição nº 2684