Neste ano tive oportunidade de dar aulas no curso de Mestrado Profissional em Políticas Públicas (MPP) da minha instituição. Interagir com quase duas dezenas de profissionais, todos muito interessados em aprender Economia Institucional e as relações entre o Direito e a Economia é um presente duplo. Primeiro, pela chance de aprender, em todas as aulas, fatos sobre o “mundo real” da gestão pública por meio desses jovens experientes na área (aprendi muito sobre leis e programas sociais específicos e muito interessantes!). Segundo, pela possibilidade de criar um impacto, mesmo que mínimo e gradual, em quem está na “linha de frente” das políticas públicas do país.
Um dos temas que mais frequentemente apareciam nas nossas discussões, sempre quando tentávamos aplicar os aprendizados dos grandes autores às práticas da política nacional, era o fenômeno das “leis que não pegam”. Esse conceito foi apresentado a mim, pela primeira vez de maneira formal, por um professor de Direito, advogado, que dividia um curso comigo. Ouvi-lo falar aos alunos, de maneira sarcástica, sobre tais leis, causou-me um desconforto enorme. Desde aquele momento (e isso já faz muitos anos…) até hoje, essa simples expressão – “leis que não pegam” (que, depois vi, é comumente mencionada em círculos jurídicos) – é para mim a imagem mais fiel do péssimo ambiente institucional de nosso país. É claro que leis que têm pouco enforcement (termo em inglês de difícil tradução, mas que pode ser entendido como “aplicação” ou “execução”) existem em qualquer sociedade humana, o que é estudado inclusive de maneira conceitual por diversos economistas e institucionalistas. Mas ter que aceitar que “leis que não pegam” são um fenômeno “normal”, cotidiano, da nossa sociedade e um “fato (comum) da vida” me gera uma grande tristeza.
Contudo, para esse fato desalentador existe uma explicação muito interessante na teoria econômica institucional. Ela mostra que a raiz de “leis que não pegam” poderia estar no choque entre instituições informais e formais (ou regras informais e formais). O ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 2009 e ex-professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, Oliver Williamson (falecido em 2020), tem um trabalho (1998) que ajuda a compreender a relação entre os diversos tipos de instituições humanas – alguns o chamam de “taxonomia de instituições”. Abaixo, reproduzo uma adaptação:
No nível mais alto, está o que Williamson chama de nível do “enraizamento social” (social embeddedness). Aqui estão as instituições informais como costumes, tradições e religiões, comumente chamadas de “variáveis culturais”. São normalmente objeto de análise de outras ciências sociais como a História, a Sociologia e a Antropologia (e menos pela Economia). Uma característica importante dos elementos desse nível é que levam muito tempo para ser mudados – Williamson ilustra como sendo séculos ou até milênios.
O segundo nível representa o ambiente institucional, naquilo que se refere às estruturas formais e legais de uma sociedade, por exemplo, o Judiciário, a burocracia e todo o aparato estatal. O terceiro nível é o das instituições que regulam as organizações e as pessoas nas suas interações do dia a dia. Nas palavras de Williamson, se no nível 2 o que importa são as regras do jogo, no nível 3 o que importa é o jogo em ação (“the play of the game”) (p. 29). Finalmente, na base da taxonomia, estão as instituições que governam as atividades analisadas pela teoria econômica tradicional, referentes à determinação de preços e quantidades nos mercados.
O esquema mostra setas em ambas as direções de um nível para outro, significando que existem influências “de mão dupla” entre eles. E a chave para a compreensão do fenômeno das “leis que não pegam” reside justamente na relação entre o nível mais alto – o das instituições informais – com o nível subsequente, o das estruturas legais. Dois autores nacionais, os professores Decio Zylbersztajn e Rachel Sztajn (2005), explicam isso de maneira clara: “Quando a coerção privada, que decorre das normas informais, coincide com os incentivos provindos pelo sistema legal, o custo de coerção é baixo; quando não, elevados custos de coerção podem emergir na sociedade” (p. 87). Em outras palavras, se a lei quiser mudar algo que está enraizado na cultura local, serão preciso esforços e custos enormes. Infelizmente, a capacidade de garantia das leis nunca foi um dos pontos fortes de estruturas formais em nosso país. Assim, de acordo com essa explicação, o fato de diversas leis “não pegarem” reside no fato de nossa cultura dominante ir contra o que as leis objetivam, e não ter havido esforços e investimentos para a mudança dessa cultura – inclusive de maiores sanções aplicadas contra o seu não-cumprimento.
Como eu sempre digo aos alunos nas aulas: leis “boas e bonitas” não faltam no Brasil, muito pelo contrário (e não sou sarcástica nessas horas!). Mas por que “não pegam”? Leis contra o racismo, contra discriminação de gênero e/ou orientação sexual? Leis anticorrupção? Leis (programas) de incentivo à poupança e contra o superendividamento? Leis de fomento à educação? Fica aí para nossa reflexão, como estudiosos, ou apenas como cidadãos.
Existe outra teoria econômica que explica, de maneira complementar, o fenômeno das “leis que não pegam”: a famosa teoria econômica do crime, de Gary Becker. Mas vamos deixar esse tema para outras colunas…
Referências bibliográficas:
Williamson, Oliver E. (1998). Transaction Cost Economics: How it Works; Where it is Headed. De Economist 146 (1), 23-58.
ZYLBERSZTAJN, Decio; SZTAJN, Rachel (2005). Análise econômica do direito e das organizações. Direito & Economia. Rio de Janeiro: Campus.