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Diário de um Escritor

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Um olhar para o cotidiano histórico e cultural da Rússia - mas muito além do futebol
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Stalingrado, Berlim e o amor

Em Stalingrado, os monumentos em homenagem à pátria

Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualizado em 5 jul 2018, 08h07 - Publicado em 5 jul 2018, 08h05
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  • A bordo do trem que vai de Volgogrado (Stalingrado) a Rostov-sobre-o-Don, 05 de julho de 2018

    Em Stalingrado, vou até o monumento em homenagem à Pátria-Mãe.
    Com um manto esvoaçante que parece incrustar asas de anjo em suas costas, a enorme estátua da Pátria-Mãe soergue uma longa espada com a mão direita e convoca todos os filhos para a justa causa da defesa nacional: Родина-Мать зовёт! (Rodina-Mat’ zoviot!, a Pátria-Mãe está chamando!)

    Monumento em homenagem à Pátria-Mãe, no coração de Stalingrado, Volgogrado
    Monumento em homenagem à Pátria-Mãe, no coração de Stalingrado, Volgogrado (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA.com)

    Próximo do sopé da estátua, desponta um panteão em cujo centro uma mão emerge do chão de mármore negro e soergue a tocha eterna em homenagem aos heróis da União Soviética que pereceram na batalha de Stalingrado – todos e cada um de seus nomes estão inscritos nas paredes do panteão, cuja abóbada vazada (como a do panteão de Roma) permite que vejamos o rosto da Pátria-Mãe, como se o fogo da memória fosse sempre alimentado pelo clamor da justiça.

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    Panteão do fogo eterno em homenagem aos heróis da Batalha de Stalingrado; através da abóbada vazada, é possível ver a estátua da Pátria-Mãe
    Panteão do fogo eterno em homenagem aos heróis da Batalha de Stalingrado; através da abóbada vazada, é possível ver a estátua da Pátria-Mãe (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA.com)

    Todos observam a chama trêmula e altiva com solenidade, a não ser um senhor bem velhinho que se posta ao largo das pessoas, como se ninguém o visse – a bem dizer, como se ele não quisesse ser visto.
    Ele chega a bater continência para os oficiais que, em dado momento, marcham ao redor da chama, mas a saudação militar é mais formal do que essencial – seus olhos (sua procura) parecem estar em outro lugar.
    Um a um, os visitantes vão indo embora, mas o velho permanece ali, em sua penumbra, ensimesmado num silêncio denso e cada vez mais pesaroso.
    Súbito, ele saca do bolso um cantil de prata fosco e delgado (vodca?) e toma um trago demorado. A pele de seu pescoço, flácida e vincada, ainda assim deixa entrever o gogó pontudo como uma lasca.
    Quando o velho saca um lenço quadriculado do mesmo bolso de onde saíra o cantil e, ao invés de assoar o nariz, leva o tecido aos olhos, me sinto solidário à sua tristeza.
    É hora de saber o que está acontecendo.
    – O senhor está bem?
    O velho me olha com espanto e dúvida – não sei bem o que fazer, a não ser reiterar a pergunta com um adendo:
    – O senhor está bem? Posso ajudar em algo?
    O velho então me mira com um olhar desafiador – e sentencia:
    – Por que você veio até mim? Você está realmente preocupado comigo ou apenas não quer se sentir culpado ao virar as costas para um velho solitário?
    Com a punhalada de sua franqueza, o velho aniquila minha condescendência.
    É hora de saber, de fato, o que está acontecendo.
    – O senhor quer dizer algo?
    O velho então me mira com um olhar sentencioso – e me desafia:
    – E você lá tem nervos para me ouvir, jovem?
    – Não sei… Mas o senhor certamente tem algo a dizer.
    – Ora, jovem, se um monte de ruínas como eu, a essa altura da vida, não tiver algo a dizer, isso só pode significar que eu já morri, e se esqueceram de me enterrar.
    – Então eu quero ouvi-lo – e o senhor pode confiar em mim.
    O velho me mira com resolução e me estende a mão direita com os dedos curvos de reumatismo:
    – Muito prazer, jovem: meu nome é Vissarion Ivanovitch Orlov, e eu sobrevivi a Stalingrado.
    Quando faço menção de expressar minha admiração e gratidão pela resistência do Exército Vermelho, Orlov me interrompe:
    – Eu não me esqueço de quando eu matei aquele alemão…
    – Mas, senhor Vissarion, era matar ou morrer – e, tendo em vista que os invasores eram os nazistas, era matar ou ser escravizado!
    – O nome dele era Fritz Eugen Ehrenreich, nascido em Berlim no dia 16 de dezembro de 1922: eu o matei em seu 20º aniversário, jovem.
    – Mas como é que o senhor soube de tudo isso?
    – Foi o próprio Fritz quem me disse…
    – Ué, como? Mas o senhor não o matou? Como é que ele te falou essas coisas?
    – Eu era sniper, jovem – e dos bons. Era para o tiro ter varado o capacete do Fritz e rasgado a cabeça dele da testa até a nuca, do lobo frontal até o cerebelo – assim prometia a mira telescópica.
    – Mas o que foi que aconteceu?
    – Aconteceu que, depois do disparo e do sinal de que aquela zona estava limpa de chucrutes invasores, eu cismei em ir até o local para pegar a plaquinha de identificação que cada soldado alemão pendurava ao redor do pescoço, e daí eu encontrei o Fritz vivo – ele estava se esvaindo em sangue, eu sentia o calor da vida abandonando o corpo dele… Nessa hora, jovem, não tem russo, não tem alemão: quando alguém agoniza diante de você, quando você vê um rosto se contorcer, a dor te toca – na guerra, você é o próximo. A bala acabou varando a lateral do pescoço dele – eu fiz um torniquete, ofereci água do cantil, mas ele não quis, o Fritz tentava falar, mas tava saindo sangue da boca também, daí ele engasgava – foi então que, desesperado, com as mãos já desfalecidas, o Fritz começou a apontar, com o queixo, pro bolso dele junto ao peito, sob o símbolo da águia do Reich. De lá eu saquei uma carta com letra redondinha de mulher, dentro da qual havia uma foto de um bebê recém-nascido, e uma outra carta, dessa vez com garranchos masculinos, dentro da qual havia um crucifixo de madeira. Quando o Fritz me viu passando o olho por tudo aquilo, ele conseguiu driblar a própria dor e, com uma voz pastosa de morto-vivo, ficou balbuciando as seguintes palavras, como um mantra: “Mein Sohn… Kreuz für… Taufe… Meine Frau… Mein Sohn… Kreuz für… Taufe… Meine Frau… Mein Sohn… Kreuz für… Taufe… Meine Frau…”.
    Ofegante, o senhor Orlov estaca as palavras e busca o cantil no bolso novamente.
    Depois de mais um trago bem fundo (era vodca, de fato), ele continua:
    – Eu não sabia alemão, mas “Mein Sohn… Kreuz für… Taufe… Meine Frau…” foram as primeiras palavras da língua de Marx que eu aprendi: “Meu filho… Cruz para… batismo… Minha mulher…”.
    – E então? O que foi que você fez?
    – Eu segui o Exército Vermelho até Berlim, jovem – a plaquinha de identificação do Fritz, a foto de seu filho Franz, a cruz para o batismo, a carta perfumada da esposa e os garranchos da resposta seguiram comigo até o fim.
    – E então?! O que foi que você fez?!
    – Sob o risco de ser acusado de deserção, caso o Sargento Obuzov desse pela minha ausência, e sob o risco de ser alvejado pela resistência dos civis alemães que não aceitavam a queda do Reich, eu fui até o que restava do bairro de Kreuzberg e, à altura do número 21 da Schönleinstraße, eu encontrei, no segundo andar, o apartamento da família Ehrenreich. Agora veja, jovem: em nenhuma ocasião da guerra eu senti tanto medo quanto naquele momento – quando uma bomba despenca, rapaz, você logo vira grão de areia; a amizade na guerra, por sua vez, é curiosa: você tem medo de ficar sozinho, porque a solidão é flanco aberto para a covardia do inimigo, e você também quer conversar, quer dizer (e mentir) para o teu colega de farda e de infortúnio que é possível fazer planos para depois da guerra, que há alguém te esperando, que a tua casa ainda está lá. Mas, num zás, teu colega tomba do teu lado – sabe aquela coisa de você não acreditar que uma pessoa com quem você falou ontem (alguém que parecia inquebrantável) acabe morrendo do nada? Esse é o cotidiano da guerra: laços totalmente arruinados, escombros até mesmo (e sobretudo) dentro da gente – tudo, absolutamente tudo, é quebradiço – e perecível. Qual foi, então, o único laço (o único afeto) que me restou? Sim, porque a minha família inteira morreu, jovem – maldita Blitzkrieg! O que foi que me restou? Cumprir uma promessa que eu nem cheguei a fazer – apaziguar a dúvida da viúva e do filhinho de Fritz, devolver a carta perfumada, transmitir os garranchos da resposta e entregar a cruz do batismo. E eu, como mensageiro, era a própria figura da Morte com a capa preta, a foice na mão direita e a ampulheta na mão esquerda. Como é que, antes de mais nada, você sepulta a esperança de uma esposa com a sentença de morte do marido? Sim, porque a gente quer se enganar, a gente quer acreditar que, mesmo depois de anos sem notícia, o Fritz vai voltar a aparecer. Depois do choro copioso da mulher, jovem, vem o paradoxo da calmaria – porque, bom, a ansiedade tripudia com a gente, a dúvida parece um punhal escarafunchando a ferida, mas a morte é certa e concreta, ela é tão cruel quanto inabalável, daí você sofre e sabe por que sofre – eis o pêndulo da alma, jovem, veja de que estofo a gente é feito, rapaz! Só que aí, depois, vem o pior, vem o mais duro, vem o mais difícil – e daí o meu medo, e daí o meu crime, e daí o meu castigo: como é que você diz para a Susan e para o pequeno Hans, então com 3 anos, que você é o assassino de Fritz? Como?!
    O senhor Orlov olha para o fogo da vitória como quem quer (e vai!) apagá-lo.
    O velho soldado levanta a cabeça e, através da abóbada vazada, vislumbra a estátua da Pátria-Mãe com o rosto transtornado, como se a mera insinuação de justiça lhe causasse náusea.
    – Eu não revelei a verdade última para a Susan, jovem, eu não disse nada – mas eu sei que, desde o momento em que ela me viu junto à soleira de sua porta com a farda do Exército Vermelho, ela sabia quem eu era e o que eu tinha feito – ela sabia quem eu era, jovem, justamente por aquilo que eu tinha feito. E veja só: a Susan se esgoelou, a Susan até me xingou, mas, ao fim, a Susan não sabia mais como me agradecer – quase não havia comida no arremedo de apartamento, de modo que nós só pudemos nos sentar, sempre falando baixinho, para que ela me contasse histórias de Fritz: como os dois tinham se conhecido, os planos que iam realizar, a gravidez, o nascimento do pequeno Hans, a convocação para a guerra – e a completa falta de notícias. Tudo isso entreouvido pelo pequeno Hans, cujos olhos azuis bem esbugalhados pareciam captar o sentido secreto das coisas. Súbito, eu digo para Susan que preciso ir, que é muito arriscado ficar aqui sequer por mais um minuto, então ela pousa as mãos sobre as minhas, por piedade, por angústia, por solidão, e me pede – ela suplica àquele que fizera do pequeno Hans um órfão – que, quando eu voltar para casa, quando eu abraçar meus entes queridos (como eu poderia lhe dizer que Hitler não me deixara ninguém?), ela quer receber uma carta minha, uma carta de um amigo russo – a guerra, afinal, havia terminado, e ela agora tem um amigo que vive no país e na cidade por onde Fritz tinha caminhado. Você jura que me escreve? Eu me lembro até agora, jovem, das mãos dela abertas e apertadas uma contra a outra, como em oração, para que eu selasse uma promessa.
    O senhor Orlov, então, volta a revolver o bolso da calça.
    Dessa vez, o velho soldado saca não o cantil, mas um maço volumoso de cartas.
    – Aqui estão quase 75 anos de correspondências, jovem – uma carta dela por ano, desde 1945. Falamos sobre tudo – e, à distância, eu, o assassino de Fritz, me tornei seu confidente. Em Stalingrado, Fritz havia morrido; em Stalingrado, Susan tinha um amigo. E doeu muito em mim – doeu como se eu tivesse perdido o meu próprio filho (o filho que eu nunca tive, jovem) –, quando eu soube que Hans, aos 36 anos, sofreu um terrível acidente de carro e faleceu (isso foi em novembro de 1981). Por causa da Guerra Fria e do famigerado muro em Berlim, era praticamente impossível visitar a Susan – veja só: a guerra permitiu que nós dois nos conhecêssemos, mas a paz acabou impedindo nosso reencontro. Mas agora que a Susan e eu já somos nonagenários – agora que a Susan acaba de velar seu segundo marido –, ela me mandou uma nova carta que chegou há algumas semanas, jovem: a 73ª carta, veja só.
    – E o que ela te disse na carta, senhor Orlov?
    – Ela me disse que quer vir morar aqui em Stalingrado…
    – Como? É mesmo?!
    – Sim. Ela me disse que quer trazer para cá as cinzas do Hans e jogá-las no Volga. Ela disse que quer permanecer aqui, onde o Fritz está – e onde eu estou…
    – E o senhor já lhe respondeu?
    – Ainda não…
    – Mas e o senhor – o que o senhor quer?
    – Eu, assassino de Fritz, sobrevivente de Stalingrado e confidente de Susan?
    – Sim, o que o senhor quer?
    Como bom russo, o senhor Orlov esvazia o cantil até a última gota – e sentencia:
    – Eu tenho medo, jovem…
    – Mas medo do quê?!
    – Medo de sondar a minha própria vontade.

    Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.

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