Nelson Rodrigues foi, e ainda é, uma figura única na literatura brasileira. Não há quem goste “mais ou menos”. Ou são apaixonados pelas suas centenas de crônicas, que colocaram às claras as neuroses das relações humanas, ou o declaram como a escória do machismo e da perversão. Eu estou no primeiro grupo. Não faz muito tempo, estava folheando uma de suas coletâneas e li A grinalda. Logo me veio à mente a dinâmica da relação entre o governo e os contribuintes. Tenho certeza de que todos vão concordar comigo.
O caso é sobre Odete e Elesbão (sim, esse é o nome do personagem). Eram namorados. Elesbão fazia o tipo malandro, não gostava muito de trabalho e passou a vida sendo bancado por suas mulheres. Já Odete era de família tradicional, criada em berço de ouro e sempre protegida pelo pai. Um dia Odete chamou Elesbão para uma conversa séria, o pai havia descoberto o passado do sujeito e ela queria saber se era verdade. O rapaz resistiu de todo jeito, mas no final contou tudo a Odete. Confessou que realmente enganava suas namoradas e esposas e, inclusive, estava vivendo uma vida dupla, porque se encontrava também com uma moça rica, chamada Vanda, que o financiava. Foi um susto, mas Odete e Elesbão conversaram e decidiram continuar com o relacionamento, apesar dos pesares. Ele tentou se aprumar na vida, conseguiu emprego e pediu a mão de Odete em casamento. Ela ficou muito animada, mas exigiu um vestido caro para o matrimônio. Elesbão ganhava pouco, jamais conseguiria pagar aquilo com seu salário, então a própria Odete sugeriu que Elesbão fosse à procura de Vanda. Ele foi e na conversa não mentiu. Disse que o dinheiro era para seu casamento com Odete e que seria usado para comprar o vestido da noiva. Para surpresa, Vanda concordou e fez o cheque, mas no final teve a sua vingança: logo após a festa, ela surgiu diante de Odete, disse quem era e, sem pudores, rasgou o vestido da mulher e sapateou em cima da grinalda.
Perceberam a semelhança? Se não pegaram, eu explico no contexto das notícias da semana passada, em que o governo encaminhou à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) n. 3.394/2024. Nele propôs o aumento da alíquota da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL), que também incide sobre o lucro, mas não se confunde com o Imposto de Renda de Pessoa Jurídica. Os dois andam de mãos dadas, todavia, sendo a CSLL uma contribuição, e não um imposto propriamente, a União não está obrigada a repartir o resultado da arrecadação com estados e municípios, fica tudo para ela. Também foi proposto o aumento do Imposto de Renda incidente nos Juros sobre Capital Próprio (JCP). Trocando em miúdos, o JCP é uma forma alternativa à remuneração dos acionistas de uma empresa, mais vantajosa quando comparada aos dividendos, porque gera reduções tributárias tanto à empresa quanto aos acionistas.
Para bancos, o aumento da CSLL será dos atuais 20% para 22%. Seguradoras, empresas de capitalização, corretoras e sociedades de crédito pagarão 16%, ao invés dos atuais 15%. Para as demais pessoas jurídicas, a carga sobe de 9% para 10%. Já o JCP terá sua alíquota majorada de 15% para 20%. Os aumentos nominais não parecem ser muitos expressivos, mas, segundo informações do próprio Ministério da Fazenda, a manobra poderá lhe render mais de 20 bilhões de reais já em 2025.
A notícia vem na mesma semana em que a VEJA traz a excelente reportagem “Navegando no Escuro”. De acordo com a matéria, há sérias falhas nos controles de gastos realizados em programas sociais, que geram prejuízos bilionários. O texto fala primeiro do Fies. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), não existem dados seguros para atestar que as razões da própria existência do programa ficam de pé, porque não é possível saber o básico. Por exemplo, não há como saber se os alunos beneficiados estão, ou não, matriculados nos cursos que são pagos pelos cofres públicos. Também não é possível saber se os participantes do programa, que buscaram financiamento do Erário para incrementar sua formação, realmente tiveram melhores empregos ou salários mais altos. O Prouni vai pelo mesmo caminho.
É importante sublinhar, com todos os grifos, que os apontamentos não vêm de pensadores da direita ultraliberal insensível e desumana, narcolibertários do mal que defendem o Estado mínimo, ou quaisquer outras caracterizações do gênero que circulam nas redes sociais todos os dias. Muito ao contrário, as conclusões são do próprio TCU, que é o órgão legalmente responsável pela fiscalização do gasto público.
A cereja do bolo vem com a notícia desta semana a respeito dos gastos com educação. Segundo relatório divulgado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o governo reduziu os gastos com educação em 2023. Insiste em aumentar impostos, gasta menos com educação e não controla para onde vão os recursos.
Tudo isso leva a inevitáveis indagações a respeito da efetiva necessidade do aumento de tributos, já que os impostos poderiam ser menores se as despesas fossem reduzidas.
O PL n. 3.394/2024 é apenas parte de um grande problema. Desde dezembro do ano passado, o governo vem tentando aumentar sua arrecadação atropelando a realidade do país. Tivemos as restrições às compensações tributárias, a revogação de benefícios fiscais, a MP do Fim do Mundo e a própria reforma tributária, que tem o provável efeito de aumentar os tributos sobre consumo. Agora, temos o aumento da CSLL e do imposto sobre JCP e seus efeitos também parecem ser intuitivos: se os tributos sobre lucros aumentarem, os resultados das corporações tendem a cair. Não seria errado assumir que, para isso não acontecer, as empresas podem aumentar suas margens.
Felizmente, deputados e senadores deram manifestações públicas sobre suas discórdias em relação à proposta apresentada pelo Ministério da Fazenda. Foram palavras de ordem contra o aumento da carga tributária, que prejudica o empreendedorismo, o desenvolvimento dos negócios e a sociedade, sem contar as críticas aos gastos desenfreados do governo. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, declarou expressamente que é quase impossível que o Congresso aprove o PL n. 3.394/2024.
Mesmo que essas tentativas sejam barradas, a verdade é que a sociedade brasileira convive, há tempos, com uma das maiores cargas tributárias do mundo, mas recebe de volta serviços públicos de pouca qualidade e financia uma máquina ineficiente e inchada. Uma coisa parece ter escapado da racionalidade do governo, embora óbvia: não existe “recurso público”; o que há, e sempre será assim, é dinheiro dos contribuintes nas mãos do Estado, que deve gastá-lo com responsabilidade em prol dos contribuintes, não do governo.
Tal como Vanda, o contribuinte brasileiro sempre pagou as contas, mas vem sendo chamado a pagar mais para sustentar gastos cada vez maiores do governo, que nem mesmo sabe para onde o dinheiro está indo. Ao menos é o que diz o TCU.
A reação do pagador de impostos tem sido institucional. Prova disso está no imenso volume de processos tributários que tramitam não só no Poder Judiciário, mas também nos órgãos administrativos de julgamento, como o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o Carf.
No entanto, a resposta deve ser proporcional à escalada do ímpeto arrecadatório do governo. Talvez rasgar o vestido do fisco e sapatear em sua grinalda seja muito, mas há de ser ácida e marcante, tal como ocorreu com o levante contra a MP do Fim do Mundo. Nesse espírito, fecho o artigo com uma das frases mais controversas do Nelson, já adaptada para este texto: “os contribuintes gostam de apanhar; os normais, porque os neuróticos reagem”. Sejamos neuróticos.