Não é civilizada a democracia que precisa consultar os quartéis para saber se generais nos gabinetes e militantes nos quintais concordam com o resultado das eleições que elegeram um novo presidente e se respeitam as instituições que coordenaram o processo eleitoral. Mas tampouco é civilizada a democracia que despende parte substancial do orçamento público para fazer funcionar estas instituições e para realizar as eleições. Onde os eleitos chegam a receber salários (além de outros benefícios) equivalentes a trinta vezes o salário mínimo que os seus eleitores recebem com trabalho, e sessenta vezes mais do que a Bolsa Família para seus eleitores pobres sem emprego. Em uma democracia que tolera a corrupção direta de roubo ou indireta no desvio de dinheiro público para prioridades sem compromisso social, para mordomias e obras ostentatórias ou para financiar seus partidos; deixando dezenas de milhões com escolas deficientes, sem água ou esgoto em suas casas, ou morando nas ruas.
Não é civilizada a democracia que, depois de décadas em funcionamento, mantém a renda nacional concentrada nos dez por cento mais ricos que recebem em média 8 000 reais per capita por mês, deixando metade da população com apenas 1 500 reais e os quarenta por cento mais pobres com míseros 250 reais, menos de 10 reais por dia. Que assegura o mesmo direito de voto a cada pessoa, mas segrega a população em um sistema de apartação onde poucos vivem em condomínios com serviços da qualidade dos ricos do Primeiro Mundo e milhões em favelas desprovidas, como se vivessem na profundidade do Terceiro Mundo.
“Deve-se valorizar o nosso maior recurso: a inteligência da população”
Não há civilização quando a violência assassina ao redor de 50 mil pessoas por ano, a maior parte delas afrodescendente e diversas por feminicídios. Onde parte da população está faminta, apesar de o país ser o maior exportador de alimentos no mundo. A civilização da democracia exige economia com produtividade elevada, capacidade de inovação e de inserção internacional, com sustentabilidade e, sobretudo, distribuição justa de renda. Deve-se valorizar nosso maior recurso: a inteligência da população, formando-a com liberdade e competência para buscar a felicidade pessoal e para construir o país. A falta de escolaridade na idade certa faz com que dez milhões de adultos sejam incapazes de reconhecer a própria bandeira, por não ler o lema escrito nela, e condena os matriculados a um sistema educacional segregado entre “escolas senzala” e “escolas casa-grande”, reproduzindo gerações de analfabetos para a contemporaneidade, com baixa produtividade na criação da renda nacional e sem participação na sua distribuição com justiça.
Um ano depois, parte da população ainda apoia o ato golpista de 8 de janeiro, e os demais acreditam que basta defender as instituições democráticas. Além da repulsa à tentativa de golpe, é hora de união para civilizar a democracia. A defesa da democracia requer também unidade nacional para construir uma nação com eficiência, justiça, cultura, harmonia e integração no mundo: uma democracia civilizada. Para tanto, é preciso romper com a principal fábrica de nossas barbaridades: a baixa qualidade e a imensa desigualdade com que a educação de base é oferecida hoje aos que poderiam civilizar o país no futuro.
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2024, edição nº 2876