Eles podem salvar vidas, reunir pessoas, causar problemas, oxigenar as ideias, criar e exorcizar demônios… Há quem fuja deles. Há quem os consuma compulsivamente. Se estamos aqui para contar história(s), é porque esses objetos sobreviveram e resistem, ainda que as distrações atuais (e digitais) sejam um adversário da pesada.
E é claro que só eles poderiam protagonizar O Vício dos Livros, a nova obra do escritor português Afonso Cruz publicada pela Editora Dublinense. Com sua prosa saborosa e bem-humorada, o autor nos convida a acompanhá-lo em 31 pequenos ensaios. E edifica um feito e tanto: constrói um livro sobre livros que não interessará apenas a devoradores de livros.
Entre causos, citações e reflexões, Cruz – que dá as caras nas livrarias com romances engenhosos como Vamos Comprar um Poeta e Para Onde Vão os Guarda-Chuvas, também da lavra da Dublinense – mostra como os livros têm o condão de mudar destinos, individuais e coletivos, ainda que nem sempre fisguem multidões.
O vício dos livros
Como de praxe, a coluna Conta-Gotas deixou três perguntas com o autor:
1. Sobre o vício (ou a virtude) dos livros, acredita que é realmente possível contaminar as pessoas com o vírus da leitura?
2. No livro, você pondera sobre os fatores que roubam a atenção dos livros. Estamos condenados a ser uma tribo cada vez menor de leitores contumazes?
3. Evocando outra história presente na obra, a que faz menção a uma inscrição na biblioteca do faraó, os livros seriam a melhor terapia para a alma?
Como bom prosador que é, Cruz respondeu em um único texto. E, penso eu, bem que ele poderia ser incluído na próxima edição de O Vício dos Livros. Com a palavra, o escritor.
Vivo no interior de Portugal, no campo. Por vezes ainda acontece de algumas pessoas me pedirem ajuda para ler os preços no supermercado ou os ingredientes de algum produto. Historicamente, a população dividia-se em pessoas que não sabiam ler e uma elite que sabia. No caso de Portugal, quando meu pai nasceu, cerca de metade da população era analfabeta.
Isso tem mudado globalmente, ainda que em diferentes dimensões. Os leitores aumentam, e são a maioria, ainda que não sejam propriamente leitores de livros e/ou leitores assíduos de livros. O primeiro passo é esse: ter uma população letrada.
O acesso à cultura, relembro, é um dos direitos humanos. Assim, os leitores não são uma tribo cada vez menor, mas uma tribo com potencial de crescimento que nunca teve antes, ainda que existam muitas dificuldades associadas. A leitura não é tão sedutora como são outras formas de entretenimento, é exigente, coloca-nos muitas vezes em silêncio, interrompe o mundo à nossa volta, faz-nos refletir.
Mas, pela sua lentidão inerente, é um exercício espiritual formador e porventura uma terapia: é possível que seja a arte com maior capacidade para mudar o pensamento abstrato, construí-lo e reconstruí-lo, e eventualmente alterar o que sentimos em relação ao outro e em relação a nós mesmos. É capaz de traçar um rumo para o nosso futuro ao mesmo tempo que molda o passado.
A ficção não é apenas um exercício intelectual, é também emocional e, como sabemos, as paixões conseguem alterar-nos com mais facilidade. É mais fácil morrer de amor do que por um arrazoado filosófico.
Posto isso, não faz milagres. Relembro uma conhecida frase de George Steiner, do livro Linguagem e Silêncio: “Sabemos agora que um homem pode ler Goethe ou Rilke à noite, tocar Bach e Schubert, e voltar na manhã seguinte ao seu trabalho em Auschwitz.”