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O sucesso atemporal das ‘Meditações’ do imperador-filósofo

Obra de Marco Aurélio, que ganha nova tradução comentada, continua dando conselhos e ajudando a administrar expectativas geração após geração

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 9 Maio 2024, 10h07 - Publicado em 22 fev 2024, 07h29
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  • Talvez o imperador romano Marco Aurélio (121-180) já soubesse por que suas reflexões seriam lidas e apreciadas quase 2 mil anos depois de registrá-las. “Dá na mesma observar a vida humana por quarenta ou 40 mil anos: pois o que haverá ainda para ver?”, anotou em suas Meditações, obra que atravessa o tempo atraindo leitores.

    Digamos que o monarca-filósofo (ou filósofo-monarca) vem furando bolhas. Continua atraindo a atenção de acadêmicos e intelectuais e, ao mesmo tempo, chegando ao grande público, não raro por meio de títulos de auto-ajuda que dizem beber das fontes do estoicismo, sua escola de pensamento.

    Best-seller atemporal, agora suas Meditações ganham nova edição, traduzida e minuciosamente comentada por Aldo Dinucci, professor titular de filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), e publicada pela Penguin-Companhia.

    E quando digo “minuciosamente comentada” não é força de expressão: são, se não me atrapalhei nas contas, 456 notas explicativas entre a introdução e os doze livretos que compõem o clássico de pouco mais de 200 páginas.

    Marco Aurélio é, ao lado de Epicteto (um ex-escravo) e Sêneca (um nobre exilado), um dos expoentes mais célebres do estoicismo, corrente filosófica de berço grego que despontou em tempos romanos e cravou suas marcas no pensamento ocidental desde então. Como Dinucci conta, logo nas primeiras páginas, o imperador sofreu reveses em sua biografia que o fariam lidar diretamente com os preceitos estoicos.

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    Viveu uma época de pestes e guerras: registrou boa parte de suas ideias em um diário que o acompanhava nos acampamentos de batalha e chegou a perder alguns de seus filhos nessa era de instabilidade. Também morreu, provavelmente de uma doença infecciosa, durante uma campanha militar aos 58 anos.

    Professou uma filosofia pé no chão, cujo didatismo é uma das razões que o faz até hoje recrutar leitores não só nos círculos universitários – uma característica que, justiça seja feita, poucos mantiveram desde então.

    Nos textos, ora curtíssimos, ora mais longos, das Meditações, deparamos com princípios éticos e políticos que não envelhecem, confrontos com crenças e crendices, orientações para não sucumbir diante da ansiedade e da depressão – e não é por menos que, ao lado dos outros estoicos, o imperador está entre os pensadores mais cultuados por psicólogos e psiquiatras.

    Fiquemos no presente, deixando de se lamentar sobre o passado e de vislumbrar o futuro. Eis uma de suas lições. Cuidemos de nós mesmos como cuidamos dos outros e do mundo. Eis outro legado, frequentemente negligenciado nas apropriações contemporâneas estampadas em livros de marketing pessoal.

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    É bonito ver obras e ideias resistirem tanto ao tempo. Ainda mais quando seguem ajudando a guiar nossa forma de pensar e agir.

    Com a palavra, o tradutor das Meditações, Aldo Dinucci.

    aldo-dinucci
    (Foto: Vieira Neto/Reprodução)

    Meditações é daqueles livros que se tornaram um best-seller atemporal e universal. A que o senhor atribui tamanho êxito?

    O diário de Marco Aurélio permaneceu praticamente perdido por séculos e séculos, com esparsas notícias ao longo da Antiguidade Tardia e da Idade Média, sendo publicado na Europa apenas no século XVI, com inúmeras edições em línguas modernas a partir de então. No seu libelo, Marco dialoga consigo mesmo, de modo similar ao que fazem amigos íntimos ao trocarem impressões entre si sobre temas relativos à vida.

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    Esse sentimento de intimidade é muito evidente no texto, razão pela qual costuma ser lido por algumas pessoas dezenas de vezes, estabelecendo-se assim laços afetivos de amizade entre o leitor vivo e o filósofo que há muito se foi. A extraordinária sensibilidade de Marco ilumina temas que concernem à humanidade como um todo, como a reflexão sobre o que é a vida plena, sobre a fraternidade humana, sobre a morte, sobre o lugar do humano no Cosmos, tudo isso entre belíssimas imagens da natureza e da nossa vida cotidiana.

    Nos últimos anos, tivemos o lançamento de muitos livros que beberam, de forma evidente ou nem tanto, de lições do estoicismo para promover discursos de autoajuda ou do tipo “como vencer na vida”. O senhor acredita que, muito embora ajudem a popularizar essa corrente filosófica, eles também possam deturpar ideias e intenções caras à escola estoica?

    O mercado cultural afeta hoje quase todos os aspectos de nossa vida: vestuário, cinema, música, alimentação, religião… Tudo acaba se transformando em mercadoria para consumidores cada vez mais existencialmente vazios. Essas mercadorias são niveladas por baixo no que se refere ao aspecto cultural propriamente dito, razão pela qual muitos dizem haver acabado a boa música, o bom cinema, a boa literatura. Isso ocorre porque o mercado cultural almeja não a qualidade de seus produtos, mas meramente a quantidade de consumidores e de renda arrecadada.

    O estoicismo, assim como tudo mais, acabou sendo transformado em produto nesse contexto do capitalismo tardio em que vivemos, apresentado por meio de simplificações grosseiras e evidentes deturpações, mais ou menos como a teologia da prosperidade o faz em relação ao cristianismo. A filosofia do Pórtico (como é também conhecido o estoicismo), na Antiguidade, jamais foi uma técnica individualista para buscar o sucesso pessoal, mas sempre se tratou de uma doutrina de amor à humanidade que busca conectar os humanos entre si por sentimentos fraternos e reconectar o humano ao Cosmos, exortando seus seguidores a ações que concorram não para o sucesso individual, mas para o bem comum, como Marco não se cansa de repetir em seu diário.

    Que mensagem do livro de Marco Aurélio o senhor julga a mais preciosa para estes tempos pós-modernos, pós-pandêmicos, regidos pela tal pós-verdade?

    Cada vez mais, estamos, humanos das ruas, fartos do dogmatismo e do cinismo de certos filósofos e intelectuais modernos e contemporâneos: ou temos aqueles que se creem donos da verdade e querem nos fazer passar essa suposta verdade goela abaixo, ou temos os cínicos no pior sentido do termo, os que não creem em nada e se resignam a uma atitude irreverente e malévola diante das vicissitudes humanas. Marco não vai nem por um caminho nem por outro. Nosso imperador não é jamais dogmático, mas se questiona frequentemente quanto aos mais centrais princípios filosóficos, como quando, por exemplo, se indaga se há providência divina (a tese estoica) ou apenas átomos (a tese atomista e epicurista), refletindo e nos fazendo refletir simultaneamente sobre as duas possibilidades.

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    Sua ideia mais importante (e menos conhecida) é que a humanidade é uma grande fraternidade, e que devemos alimentar em nós esse pensamento para que possamos agir visando ao bem comum, seja o de nossa comunidade imediata, seja o da humanidade como um todo, seja o do Cosmos. Para Marco, o humano é um animal racional e político, que só pode alcançar seu fim (quer dizer, sua plenitude e sua realização) agindo de forma comunitária por meio da interpretação adequada dos papéis que lhe cabem na sociedade e no Cosmos, tais como os de ser racional, filho ou filha, irmã ou irmão, pai, mãe, vizinho, político, entre tantos personagens que são atribuídos a nós, humanos, em nossas breves existências.

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