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O ‘maestro’ cubano que deu um baile na literatura

Editoras resgatam a obra de Alejo Carpentier, monstro literário que acabou menos lido e conhecido que os autores do boom latino-americano

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 2 set 2024, 14h49 - Publicado em 30 ago 2024, 16h36

Quem lhe vem à cabeça quando se fala em literatura latino-americana? García Márquez? Julio Cortázar? Mario Vargas Llosa? Jorge Luis Borges, que tal? Algum brasileiro, se quiser fugir da língua espanhola? É difícil quem cite, logo de cara, Alejo Carpentier, cubano que, nos seus 120 anos de nascimento, é resgatado por editoras brasileiras.

Justiça seja feita: é um dos escritores mais poderosos do continente. Louvado por críticos e acadêmicos, porém um tanto desconhecido pelo público leitor mais amplo. Felizmente, nunca é tarde para desbravar sua “selva textual”, para usar uma expressão que tem tudo a ver, na forma e no conteúdo, com seu romance Os Passos Perdidos, recém-publicado pela Editora Zain.

Ele narra a história de um musicólogo que aproveita uma viagem da esposa para partir com a amante em busca de instrumentos musicais indígenas em meio a uma floresta sul-americana – a ambientação dessa odisseia é inspirada na paisagem venezuelana que o autor havia visitado. Bem, eis um resumo superficial da ópera.

Porque, fora o enredo um tanto instigante (quem não curte uma expedição ao desconhecido?), a aventura acontece entre os ramos e folhagens do texto. A prosa de Carpentier – “barroca”, como professam os entendidos – é uma sinfonia de palavras que presta reverência à natureza e também à literatura.

Os passos perdidos

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Na selva de Os Passos Perdidos, apresentada em 1953, o real é maravilhoso (e pode ser assustador). Nela, os grandes textos que alimentaram a humanidade – a Bíblia, o Popol Vuh, epopeias homéricas, poesia romântica… – se mesclam nas linhas e interlinhas de uma jornada pelo tempo, pelo espaço e pelos descaminhos entre matas, aldeias e civilizações. Tudo embalado em um estilo peculiarmente musical, como explica seu tradutor, Sérgio Molina.

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“Traduzir Carpentier exige muita atenção à ‘música’ do texto, seus ritmos, cadências, tonalidades. É um aspecto que o autor cuidava de forma consciente e sustentada”, afirma. “Também é preciso atentar ao estilo barroco de sua obra, o que implica respeitar um fraseio que pode por vezes soar arrevesado, bem como a escolha de palavras rebuscadas.”

O desafio na leitura compensa. Os Passos Perdidos é música para os olhos, ouvidos e neurônios de quem aprecia literatura – não à toa, sua nova edição vem à baila por uma editora especializada em livros que, direta ou indiretamente, falam de música.

Além desse romance fenomenal, outra obra-prima do autor cubano de família europeia retorna às estantes brasileiras. O Século das Luzes, também vertido para o português por Molina e publicado pela Companhia das Letras, conta uma história saborosa em que a aristocracia caribenha trava contato com um personagem misterioso, egresso da Revolução Francesa, que chega a Cuba para disseminar as ideias do movimento.

O século das luzes

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Talvez o “realismo fantástico” de García Márquez tenha sido mais bem-sucedido em angariar público pelo mundo, mas o “real maravilhoso” de Carpentier é um universo que pede para ser explorado – pelo menos por aqueles que não tiverem medo de se embrenhar em sua selva textual.

Com a palavra, seu tradutor, Sérgio Molina.

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O tradutor Sérgio Molina, responsável por ‘Os passos perdidos’ e ‘O século das luzes’ (Foto: Acervo pessoal/Reprodução)

 

Embora seja estudado e cultuado por alguns círculos, Alejo Carpentier é menos conhecido e lido que outros autores “clássicos” latino-americanos, como Cortázar e García Márquez. A que atribui essa menor popularidade?

Acho que são vários os motivos. Primeiro, tem uma questão de mercado: quando a agente literária Carmen Balcells teve o tino de destacar aquele grupo de jovens escritores latino-americanos que, na década de 1960, ganharia o mundo no famoso boom, Carpentier já havia regressado a Cuba e se integrara ao governo revolucionário, o que representava um obstáculo para a negociação dos direitos de edição de sua obra no mundo capitalista.

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Além disso, ele, nascido em 1904, era bem mais velho que a turma de García Márquez (1927), Carlos Fuentes (1928) e Vargas Llosa (1936), o que dificultava sua inclusão numa “nova geração”. Mesmo o veterano do grupo, Cortázar (1914), que já estava nos seus 49 anos quando da publicação de Rayuela [O Jogo da Amarelinha, em português], tinha aparência e pegada literária bem juvenis, o que facilitava sua popularização no contexto cultural dos anos 1960 e 70.

Na comparação de García Márquez e Carpentier, penso que pesa também um aspecto mais literário, nas diferenças entre o “real maravilhoso” e o “realismo mágico”. O primeiro foi cunhado por Carpentier para nomear sua proposta de abordagem literária da realidade latino-americana, que, na sua visão, ofereceria de bandeja o extraordinário, o maravilhoso. Nesse sistema, apesar das variações que o autor foi experimentando a cada livro ao longo das décadas, não cabia recorrer ao fantástico, pois o real seria por si só suficientemente insólito, bastando lançar luz à maravilha que ele abriga.

Já o “realismo mágico”, rótulo que se aplica sobretudo à obra de García Márquez, inclui, sim, elementos fantásticos, que, mesclados à realidade prodigiosa, formam a base de um universo em que as fronteiras entre os planos se diluem, criando um ambiente onírico. Essa fórmula, obviamente, é bem mais vistosa.

Na introdução da nova edição de Os Passos Perdidos, fala-se na “selva textual” desse romance. Como a construção dessa narrativa conversa com o cânone literário?

A expressão do crítico de Roberto González Echevarría citada na nota do editor da Zain é um achado, por fazer um paralelo entre o percurso do narrador-protagonista adentrando na floresta e o mundo de livros por onde a narrativa transita. Os Passos Perdidos de fato abriga uma profusão de referências literárias, nem todas explícitas, mas cada uma com sua função na estrutura do romance, em conexão com a trajetória do herói, seus encontros, perplexidades, dúvidas e revelações.

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Lá estão desde os livros sagrados — a Bíblia ao lado dos maias Popol Vuh e Chilam-Balam — e as epopeias e tragédias antigas — Odisseia, Prometeu… — até obras das vanguardas europeias, passando por crônicas de conquistadores quinhentistas e exploradores oitocentistas, novelas medievais, poesia barroca espanhola; autores como Cervantes, Rómulo Gallegos, Conan Doyle, José Eustaquio Rivera, Joseph Conrad… e muito romantismo europeu. Este se destaca sobretudo nas referências a Percy Shelley e seu Prometeu Desacorrentado, sobre o qual o protagonista planeja escrever uma peça musical.

Segundo o mesmo Echevarría, em Os Passos Perdidos pulsa “a angústia romântica por conhecer a origem do ser e da arte, por desentranhar o segredo da criação na natureza e no homem”, e é essa busca das “formas pristinas do ser e sua expressão” que o conduzem ao poema dramático de Shelley. Na relação de Carpentier com o cânone literário, portanto, há um claro resgate do romantismo, que anda em contraponto com a retomada de formas pré-modernas.

É interessante notar que essa “floresta textual” tem uma paisagem sonora intensa e variada: as referências literárias vêm de mistura com as musicais, pois o fio condutor do enredo é a busca da música primordial.

Entre tantas mensagens latentes no livro, qual julgaria aquela mais expressiva ao leitor ou ao mundo contemporâneo?

Para leitoras e leitores latino-americanos, ainda vale muito a sugestão de observar bem a realidade ao redor para perceber quão extraordinária ela é. Essa é uma mensagem forte do “real maravilhoso” em geral. Quanto a Os Passos Perdidos especificamente, penso que o romance traz uma mensagem de alerta que permanece atual: se você quer se libertar da sina de Sísifo moderno e urbano, e buscar uma vida mais autêntica, prepare-se para enfrentar uma árdua odisseia e muitas armadilhas da ilusão.

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