A psicóloga Lia Vainer Schucman, pesquisadora na área de relações étnico-raciais, é um agente de convergência no debate sobre racismo e desigualdade racial no Brasil. Não só por cultivar uma linha de estudo a respeito, mas também por ajudar a mobilizar encontros de especialistas e ativistas e a publicação de livros que reúnem visões e propostas para enfrentar esse fenômeno tão colado à realidade nacional.
Uma dessas obras organizadas pela professora é Branquitude (Fósforo), que transfere para o papel uma série de conversas ocorridas no Instituto Ibirapitanga em 2020 e serve de introdução dinâmica a diversos conceitos e noções que permeiam a compreensão e o combate ao racismo – a começar pela própria ideia de “branquitude”, a de um mundo que opera e oprime com o homem branco entronado nas relações de poder.
No seu mais recente trabalho, Famílias Inter-Raciais – Tensões entre Cor e Amor, também publicado pela editora Fósforo, Lia apresenta os achados de sua pesquisa sobre esse tema tão presente e sensível em nossos lares e sociedade. Somos confrontados com uma instituição, a família, dotada de potenciais antagônicos (para o bem e para o mal) dentro das relações étnico-raciais.
Docente da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a autora conta que um livro que mudou sua vida foi É Isso um Homem?, do italiano Primo Levi, que trata da tortura psíquica dos confinados em campos de concentração nazistas. E acredita que o pensador e líder indígena Ailton Krenak tem uma obra fundamental para “entender parte do Brasil e adiar o fim do mundo”.
Com a palavra, a autora.
Qual é a importância de disseminarmos conceitos como o contrato racial e o pacto da branquitude, tão debatidos no livro que organizou e publicou recentemente, para a sociedade brasileira? Acredita que a noção de branquitude, ainda que não nomeada, esteja mais presente entre os nossos cidadãos?
Tanto o contrato racial quanto a noção de pacto da branquitude nos permitem entender como um pacto global de dominação entre pares pode ao mesmo tempo ser tão evidente e tão invisibilizado. E os dois conceitos ajudam a nomear o funcionamento e a dinâmica de dominação racial, o que ela significa e como funciona diariamente para alimentar a supremacia branca global.
Um dos intuitos por traz dos estudos críticos da branquitude é o de mostrar que os brancos não são a representação universal de humano, e sim uma, como tantas outras, particularidades do humano. Para isso é preciso nomear o branco como branco, e não creditá-lo como a norma. Neste sentido, sim, acho que a noção de branquitude, que significa nomear o branco e entender os privilégios materiais e simbólicos que as pessoas brancas obtêm dentro de uma sociedade com racismo estrutural está bem mais presente que há dez anos.
Assistimos a uma expansão na publicação de autores negros e de obras sobre racismo e desigualdade racial no país, bem como um florescimento do debate a respeito na arena pública. Dez anos depois do início do Black Lives Matter, avalia que o Brasil finalmente despertou para a causa e está buscando mudar essa realidade?
Há talvez uma maior conscientização, ou conhecimento sobre o tema, mas, se pensarmos nos dados de acesso a saúde e educação, na representação política, na distribuição de recursos e, principalmente, nos índices de violência, notamos que a desigualdade entre negros e brancos é brutal – e pouco diminuiu. Não podemos contabilizar que há uma maior consciência se ela não se transforma em ações, direitos e oportunidades iguais entre os diferentes grupos raciais.
Acredito que hoje se fala mais sobre o assunto, reconhecemos mais essas questões. No entanto, e o que me parece ainda mais perverso, fazemos muito pouco, e agora não há a desculpa que é por falta de informação. É preciso entender que falar de racismo não está sobretudo no âmbito da informação e da educação, mas no das relações de poder.
Ainda há de se perguntar: o que está pactuado em nossa sociedade para que se normalize e naturalize tamanha desumanização? Desumanização que não faz parar o país em um momento como este, em que três chacinas ocorreram recentemente, uma delas com uma criança de 13 anos morrendo à luz do dia com cinco balas. Isso não é suficiente para parar uma nação? Vidas negras não importam?
Seu último livro aborda as famílias inter-raciais. Considerando as ideias sobre miscigenação difundidas desde o início do século 20, até que ponto persiste o desafio de reconhecer e combater o preconceito racial dentro dos próprios lares?
Falar de raça nas famílias inter-raciais ainda é um tabu. Isso porque a raça na nossa sociedade aparece no imaginário como um divisor entre nós e eles. A raça é marcada por uma hierarquia entre humanos, impõe rupturas e relações violentas, foi e é responsável por massacres. E a família, no nosso imaginário, mesmo que na realidade não seja assim, é o lugar de acolhimento, é o lugar da união, o lugar de unificação.
Então como falar de algo que divide os humanos na instituição que idealiza a união? Minha pesquisa demonstra que, apesar da dificuldade de se falar disso no âmbito familiar, a família é um dos espaços mais profícuos para o desenvolvimento de estratégias para o enfrentamento, o acolhimento e a elaboração da violência racista vivida na sociedade de forma mais ampla, mas também o locus de legitimação e vivência racistas.