Alguns anos atrás, depois de um mês usando botas enlameadas para vencer caminhos íngremes de terra, finalmente calcei um sapato apropriado para as ruas urbanizadas de Paris. Invadiu-me uma sensação contraditória: era como se o que eu ganhasse em conforto, perdesse em intensidade. De repente e sem escala, eu saí de uma estrada medieval direto para uma capital moderna. Contrastes vigorosos como esse podem conter alto teor pedagógico. Oferecem uma viagem, no espaço e no tempo, que tem muito a ensinar a quem estiver disposto a aprender um pouco mais sobre a vida.
Na primeira etapa dessa aventura, meu marido, Luiz, e eu resolvemos radicalizar. Fizemos o lendário caminho de Santiago de Compostela, atravessando a pé do lado francês dos Pirineus até a Galiza, no noroeste da Espanha. São quase 800 quilômetros de subidas e descidas, que parecem mais inclinadas sob chuva e névoa, sobretudo quando o frio e o calor se alternam. Da mesma maneira que esportes mimetizam a guerra, uma caminhada em meio a tantos obstáculos impensáveis reproduz desafios que enfrentamos na vida. Para superá-los há que se aprender os segredos da simplicidade. É um exercício para esvaziar a mente de tudo o que não é essencial. No meio da serra, onde são escassos os sinais de civilização, o que importava era garantir que, a cada dia, conseguiríamos chegar à hospedaria em que encontraríamos abrigo para passar a noite. Tudo o mais era supérfluo.
Essa perspectiva, por si, torna a vida mais simples. Nada de planos elaborados, projetos sensacionais, grandes reflexões ou lembranças marcantes. O que a estrada exige é acordar cedo e partir logo. É garantir a água e o alimento durante a travessia. A mente se transforma numa tela branca. Concentramo-nos apenas em como minimizar o cansaço e a dor, e administrar as emoções do percurso. Não há atalhos, não há distrações, não há buzinas, não há o que fazer – a não ser caminhar. As ansiedades da vida moderna não cabem em quadros bucólicos.
A experiência não gera angústias, mas, ao contrário do que se poderia imaginar, também não proporciona nada parecido com paz espiritual. Nos primeiros dias imersos na natureza, nos ronda a sensação desconfortável de não estarmos sendo produtivos – como se o ser humano devesse aproveitar todos os minutos da vida, sob pena de se envergonhar pelo tempo perdido. Pois as agruras daquele caminho mágico nos ensinam que a produtividade absoluta não é um imperativo para o bem viver. As lições lá absorvidas são aplicadas mais tarde ao nosso cotidiano, em outros contextos. Por que, por exemplo, não se dar ao luxo de ler um livro não porque seja útil ou importante, mas simplesmente pelo prazer de mergulhar numa boa história? Jogar conversa fora, observar as nuvens pela janela, aguardar pacientemente o chá resfriar na xícara, bebericar sem pressa a taça de vinho, qualquer maneira de “perder” tempo nos ajuda a ajustar o ritmo frenético da vida moderna. É em momentos assim que entramos em contato com a nossa essência, quase de modo meditativo, quase como que “caminando” em Santiago ou flanando por Paris. Não é o calçado que faz a diferença – é a mentalidade de quem o usa.