Se o desapego é um atributo a ser valorizado, o apreço dirigido a objetos que nos são sentimentalmente caros é algo que também deve ser cultivado. Não pela materialidade das coisas, mas pela afeição que evocam. Não porque integrem um patrimônio, mas por fazerem parte da nossa história.
Recentemente, vivi em família a experiência de repartir pertences dos nossos pais. Eles nos deixaram nos últimos dez anos. Nesse período, mantivemos praticamente intacta a casa que haviam montado ao longo de décadas de um casamento feliz. Telas, fotografias emolduradas ou em porta-retratos, lembranças de viagens, vasos, estatuetas — tudo em volta remetia à memória, o lugar onde hoje vivem. Decidimos organizar os objetos em lotes. O acaso me brindou com um quadro em tamanho natural de minha mãe, de quem eu era muito próxima. Ela está sentada, encarando quem contemple a obra com uma expressão entre firme e serena. Fiquei também com uma coleção de coroas, compradas por meu pai e pelas quais ela tinha um xodó especial. Essas peças agora estão em casa, em locais onde com frequência repouso o olhar. Foi emocionalmente reconfortante ter feito a curadoria da parte que me coube.
“Importa guardar as memórias dos bons momentos, que ficam gravadas nas retinas”
O episódio me veio à mente enquanto refletia sobre a atitude do desapego. A contradição é apenas aparente. Tudo depende daquilo a que nos apegamos ou de que nos desapegamos. Quem pratica o desapego, deixando de lado a tralha que se revela inútil, aumenta as chances de ter uma vida mais plena. Afinal, para viver com intensidade, tudo de que precisamos é disposição para encarar o desconhecido, é curiosidade sobre culturas diferentes, é desejo de, quando as circunstâncias permitirem, se sentir em movimento pelo planeta.
Na pandemia muitas pessoas aproveitaram o maior tempo em casa para revisitar closets, prateleiras, baús e doar itens que sobravam. Essas são as pessoas verdadeiramente ricas, na definição do pensador americano Henry David Thoreau, conhecido por suas reflexões sobre a vida simples. “Uma pessoa é rica”, ele escreveu, “na proporção do número de coisas de que ela é capaz de abrir mão.” Trata-se da atitude de descartar o supérfluo e focar aquilo que importa: os sentimentos, as relações pessoais, o amor. E importa também guardar as memórias dos bons momentos, que ficam gravadas nas retinas, impregnadas para sempre no coração, às vezes com a ajuda de antigas fotografias. Imagino que nem mesmo o espírito mais desapegado abriria mão delas. Revê-las de quando em quando é uma nova experiência, diferente daquelas vividas no passado e reproduzidas em nossos álbuns afetivos, repletos de momentos em família. Luiz, meu companheiro de todas as horas, diz que temos de nos apaixonar pelas coisas que herdamos. Tem razão. Elas não são mais apenas madeira, metal, tecido, pigmentos. Superam a condição de simples coisas, adquirem aura própria, constroem um túnel do tempo — o que justifica nosso apego.
P.S. — Perdemos nesta semana a extraordinária chef Mari Hirata, amiga querida que me ensinou várias coisas; na cozinha, nas mesas e nos mercados de Tóquio. Virou estrela, embora para mim sempre fosse, brilhando mais do que qualquer uma do Michelin.
Publicado em VEJA de 9 de junho de 2021, edição nº 2741