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Naquela mesa

Memórias afetivas que permanecem por toda a vida

Por Lucilia Diniz Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h17 - Publicado em 18 set 2020, 06h00
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  • A mesa tem um quê de sagrado. Em torno do alimento que ela oferta, familiares e amigos se reúnem, estreitando vínculos e criando um repertório de memórias afetivas que poderão ser acessadas por toda a vida. Num almoço de domingo, um simples molho de tomate feito no passe vite trará de volta o elogio de sempre. Num lanche em dia de semana, o biscoito champanhe lembrará a avó. Assim como a textura macia e consistente de um pudim nos devolverá a infância já remota.

    Qualquer comida é melhor quando compartilhada. À mesa, o ritual de fazer a refeição em conjunto requer o avesso da pressa. Assim a conversa evolui solta e pode tomar rumos inesperados. Na melhor tradição latina, que valoriza o falatório entrecruzado, um comentário casual sobre o ponto da massa ou um pedido para passar o azeite podem dar origem a reflexão, piada, ensinamento, nunca se sabe. Podem terminar também em desavenças, se bem que essas tendem a se dissolver logo, em meio a aromas agradáveis.

    Guardo na retina e na alma as cenas banais e marcantes dos jantares semanais de terça-feira em casa. Meus pais nas cabeceiras, os seis filhos entre eles. Minha mãe provavelmente não entenderia o sentido de “gluten free”. Portuguesa típica, gostava de um bom bacalhau e mergulhava o pão no vinho. Adorava ainda a água portuguesa Pedras Salgadas, bicarbonatada e naturalmente gaseificada, indicada por ela para “anular” alguns exageros à mesa. Minha mãe dizia ainda que água boa deve ser rica em minerais, e jamais purificada — que só serviria para expelir os minerais do nosso organismo. Mamãe também não queria saber se alguém não gostava de cebola ou maçã, como era o caso do Abilio, o mais velho dos seis irmãos. Embates passageiros sobre esses ingredientes, aliás, fazem parte do folclore familiar, da mesma maneira que a superstição de minha mãe, que se recusava a pôr treze pessoas na mesa (mas isso só seria um problema quando a nós se juntaram genros e noras). Diz o ditado popular que, para conhecer uma pessoa, é preciso antes comer um saco de sal com ela. Famílias que comem unidas batem a marca proverbial com folga.

    “Guardo na retina e na alma as cenas banais e marcantes dos jantares semanais de terça-feira em casa”

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    Hoje, aqueles que podem ficar em casa estão tendo a oportunidade de resgatar um hábito — de ouvir e falar entre goles e garfadas — que emprestou leveza de espírito, inteligência e charme à própria civilização.

    É inevitável que a mesa também nos faça sentir saudade daqueles que já não se sentam mais ao nosso lado. A cadeira vazia é uma metáfora pungente da partida de um ente querido. “Naquela mesa ele sentava sempre / E me dizia sempre o que é viver melhor”, diz o samba clássico que o filho de Jacob do Bandolim fez para o pai. Em meio à nostalgia vazada em tom menor, o que ficam, para mim, é o elogio do convívio e as boas lembranças, que logo se sobrepõem ao vácuo. Ficam ainda as histórias divertidas, os argumentos afiados, as lições pertinentes, o exemplo de vida. E fica também, como que embaçada nos vapores que sobem das travessas, a cena agitada e alegre embalada pelo tilintar de copos e talheres.

    P.S.: a todos aqueles que perderam seus entes queridos pela Covid-19 neste ano tão difícil e doloroso eu dedico este artigo.

    Publicado em VEJA de 23 de setembro de 2020, edição nº 2705

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