“Woman, Life, Freedom!”, “Woman, Life, Freedom!”. Escutei esse coro em uma passeata em Nova York, nas proximidades do arranha-céu One Vanderbilt, onde manifestantes tremulavam bandeiras do Irã. Com o frio do inverno americano, todo mundo estava agasalhado. Mas nenhuma mulher ali usava o véu islâmico. O ato que testemunhei em pleno coração de Manhattan, a quase 10 000 quilômetros de Teerã, capital iraniana, cobrava vida e liberdade para as mulheres de um dos principais países do Oriente Médio.
Era uma resposta à morte da iraniana Mahsa Amini, em setembro de 2022, que sucumbiu depois de ser detida e ficar sob custódia da chamada “polícia moral” daquele país por não vestir corretamente o hijab, o véu muçulmano que cobre a cabeça das mulheres. A jovem de apenas 22 anos não estaria, na avaliação dos seus algozes, escondendo adequadamente os cabelos. Em resposta a esse ato, uma onda de indignação e solidariedade se espalhou por todo o mundo.
Essa corrente inspirou diversos formatos de protesto. No movimento #HairForFreedom (cabelo pela liberdade), atrizes francesas gravaram vídeos cortando mechas de seus cabelos, ação repetida por mulheres de vários países, inclusive brasileiras. Personalidades do mundo inteiro também cantaram canções na língua persa. Mas o que mais me chamou a atenção foi o movimento #CookForIran (cozinhar pelo Irã), que envolveu chefs de origem iraniana para estimular pessoas do mundo todo a conhecer a realidade do país por meio de sua comida. A atividade segue a ideia do #CookForSyria e do #CookForUkraine, de promover receitas e visitas a restaurantes típicos como forma de engajamento em causas humanitárias.
“Comida, tradições e hábitos sempre serão ferramentas eficazes de conexão e empatia”
“Quando as notícias se repetem, as pessoas pensam: ‘Ah, outro grande protesto no Irã. Mais jovens mortos no Irã’, e começam a ficar insensíveis”, explicou ao diário britânico The Guardian uma das idealizadoras da iniciativa, a americana-iraniana Layla Yarjani, para quem comida e cultura são as formas mais eficazes de conectar os povos. Concordo plenamente. Falar dos países e das causas que movem sua gente por meio da gastronomia ajuda a reavivar a energia dessas lutas e a trazer novos públicos para o debate. Comida, tradições e hábitos sempre serão ferramentas eficazes de conexão e empatia. No caso do Irã, com sua cultura e culinária milenares, que se desenvolvem desde a fantástica civilização persa, isso é ainda mais verdadeiro.
Por que não envolver adeptos à causa “Woman, Life, Freedom!” em torno de um ghormeh sabzi, cozido de carne, ervas e favas, que é um dos principais pratos típicos do Irã, seja comendo, ensinando ou aprendendo sua receita? Ou incorporar mais romã, hortelã e chás — alguns dos ingredientes que não podem faltar no dia a dia iraniano — a atividades culinárias e culturais de outros países, tendo o debate com especialistas e autoridades no cardápio? Ou ainda usar eventos do tipo para arrecadar fundos para essas causas humanitárias — como ocorreu no #CookForIran?
O Irã jamais será o mesmo depois da mobilização que nasceu no país e espalhou uma centelha de esperança pelos quatro cantos do mundo. O governo iraniano anunciou que reavalia a obrigatoriedade do uso do véu. Não sabemos o que acontecerá com o regime. Mas já está claro que a aspiração que empolgou mulheres e homens por toda parte não foi em vão.
Publicado em VEJA de 1º de fevereiro de 2023, edição nº 2826