Outro dia, enquanto cumpria minha rotina de distanciamento social, me peguei caminhando pela trilha de Santiago de Compostela, no norte da Espanha. Viajei nas lembranças que ficaram da experiência única que, há um ano, meu marido e eu tivemos ao percorrer o místico caminho.
Mas não foi a nostalgia da liberdade de locomoção que me atiçou a memória daqueles trinta dias de aventura. Revisitei as veredas da meca dos peregrinos pelo inesperado paralelo que elas oferecem ao isolamento a que estamos submetidos. Ao primeiro olhar, são situações antagônicas. Numa, predomina a exuberância de uma natureza indomada que quase engole os sulcos abertos pelos caminhantes ao longo do tempo. Na outra, em contraste, a ausência de horizonte é determinada por quatro paredes.
Há muito em comum, no entanto, entre as peripécias a céu aberto e a quarentena a portas cerradas. De um jeito ou de outro, de repente nos vemos frente a frente com o desconhecido. No primeiro caso, somos impactados pelo que vem de fora. No segundo, pelo que vem de dentro. Ao avançar pisando em lama e pedregulhos, tive de lidar com situações extremas. O granizo machucava, o frio batia como açoite, a fome consumia as energias, o cansaço era desmoralizante. Depois de mais de 500 quilômetros de agruras mil e conforto zero, cheguei ao meu limite físico. Lembro-me apenas de que, no auge da provação, rezava para que o dia seguinte me presenteasse com um novo ensinamento.
“Viajei nas lembranças que ficaram da experiência pela trilha de Santiago de Compostela”
É preciso resiliência para fazer longas travessias, sobretudo em reclusão. No início da quarentena, as pessoas até se distraem com a novidade. Após a primeira semana, porém, experimentam algum enfado. Em quinze dias, bate o esmorecimento. Na sequência, vem a angústia e o temor pela saúde mental.
Grandes desafios exigem redobrada disposição de espírito. Foi assim em Santiago de Compostela e, para muitos, tem sido assim em São Paulo e outras cidades. Duas realidades distintas unidas por um mundo nunca antes habitado: a floresta inóspita, a casa fechada. Resiliência é a elasticidade da mente, a capacidade que desenvolvemos de lidar com situações de stress. Temos de buscar forças para resistir à adversidade. Tais forças estão dentro de nós, escondidas nas dobras da memória. Em tempos de pandemia, temos de acessar essas pastas afetivas do fundo de nosso hardware, sob pena de provocarmos uma espiral emocional negativa. Não é incomum, por exemplo, que a pressão de um isolamento prolongado detone episódios de compulsão alimentar, que faz a vítima (acho que essa é a palavra mais adequada) ganhar em peso o que perde em autoestima.
Ao final da caminhada, como fazem tantos fiéis, deitei no chão da Praça do Obradoiro, em frente à catedral, e contemplei o céu. Senti que anjos nos abençoavam. Pensava em quantos obstáculos havia superado para desfrutar aquele momento. Pensava também nos aprendizados que todos eles haviam me proporcionado. Carrego comigo a lembrança de cada passagem daquela viagem. Cada uma delas ajuda a compor meu repertório de autodefesa contra os percalços da vida. O problema e a sua solução estão dentro de cada um de nós.
Publicado em VEJA de 20 de maio de 2020, edição nº 2687