Uma das principais publicações temáticas sobre arquitetura brasileira, a revista Monolito lançou sua edição de retrospectiva de 2014. Nove projetos recém-concluídos foram eleitos os mais significativos entre todos os construídos no ano passado.
Curiosamente, nenhuma das doze arenas preparadas para a Copa do Mundo figura na lista. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), o gasto com os estádios foi 50% maior do que o previsto — somados, custaram 8,44 bilhões de reais. Em sua lista de eleitos, a publicação afirma que as arenas não chegaram a fazer feio, deixando claro que também não fizeram bonito o suficiente para figurar entre os melhores projetos do ano, apesar de todo o montante que consumiram. Há um ano muito se discutia sobre qual seria o legado da Copa. Passado o Mundial, a discussão continua, já que ninguém sabe ao certo o que fazer com essa dezena de arenas gigantescas e sem público (cultos religiosos têm sido citados como opção).
Outra surpresa da lista da Monolito é a presença de uma obra estrangeira entre as melhores em território nacional. Trata-se da Arena do Morro, na periferia de Natal, que leva a assinatura de um dos mais renomados escritórios de arquitetura do mundo, o suíço Herzog & de Meuron, autor do estádio apelidado de Ninho de Pássaro, em Pequim, e da galeria de arte Tate Modern, em Londres. Um bairro pobre de Natal tornou-se a primeira localidade do país a receber uma obra da dupla.
O projeto teve início quando o escritório preparava o projeto do Complexo Cultural Luz, ou Palácio da Dança, encomendado pelo governo paulista para ocupar a área em frente à Sala São Paulo, no centro da capital. Esse projeto foi anunciado em 2009, na gestão de José Serra, e orçado em 311,8 milhões de reais, que seriam pagos apenas com dinheiro público. O alto valor gerou uma série de críticas, inclusive por parte de arquitetos brasileiros, que duvidaram do custo-benefício da obra proposta. Só os honorários da dupla suíça ficariam em torno de 23 milhões de reais. Para resumir a história, o projeto foi oficialmente engavetado por Geraldo Alckmin em março passado e a área hoje segue ocupada pelos usuários de drogas da Cracolândia. Enquanto isso, nesse meio tempo, Natal ganhou uma obra Herzog & de Meuron para chamar de sua. Ganhou é mesmo o termo, já que os suíços abriram mão de seus honorários para viabilizar o projeto, uma (bela) quadra esportiva anexa a uma escola pública.
Claro que isso não significa que os brasileiros dependam da solidariedade alheia para obterem uma obra de prestígio internacional. Vimos em novembro passado o Grupo Safra adquirir o The Gherkin, icônico edifício desenhado por Norman Foster em Londres e arrematado por 3 bilhões de reais. A justificativa foi de que o grupo deseja investir em propriedades especiais. Há, portanto, portas abertas à arquitetura. Resta saber abri-las.
A lista da Monolito traz outra boa surpresa, a inclusão de um conjunto habitacional entre os melhores projetos feitos no Brasil em 2014. Embora programas governamentais como o Minha Casa Minha Vida insistam em estigmatizar esse tipo de construção (apartamentos pouco ventilados e mal iluminados, afastados do centro e isolados de comércio, serviços e lazer), algumas obras relevam ser possível aplicar fórmulas criativas e alcançar resultados bem melhores dentro do mesmo orçamento.
Na história recente de São Paulo, o mérito de colocar pessoas de baixa renda em edifício bem projetado é da urbanista Elisabete França, que esteve na Secretaria Municipal de Habitação de 2005 a 2012 e coordenou os projetos habitacionais e de urbanização de favelas — caso de Heliópolis, hoje chamada de bairro Cidade Nova Heliópolis. É lá que fica este projeto habitacional eleito como um dos melhores de 2014 e que leva assinatura do escritório Biselli Katchborian. Passarelas metálicas interligam blocos estruturados dentro do padrão parisiense: baixos e com um pátio central. São 420 apartamentos de 50 metros quadrados.
O editor da Monolito e crítico de arquitetura, Fernando Serapião, conversou com o blog sobre essas e outras questões.
A lista completa de eleitos e mais detalhes dos projetos estão no anuário.
1) Por que nenhum estádio da Copa do Mundo figurou na lista dos melhores trabalhos de 2014?
Apesar de as arenas serem razoáveis, mesmo custando o que custaram, nenhuma delas é uma obra impecável do ponto de vista arquitetônico. Mas, se eu tivesse que citar três, diria que as mais relevantes são: o Itaquerão (de Anibal Coutinho, a única inteiramente nova); o Castelão (do Héctor Vigliecca); e o Mineirão (do Gustavo Penna).
2) O primeiro projeto do Herzog & de Meuron no Brasil foi um ginásio em Natal. É mais difícil ter escritórios internacionais trabalhando no Brasil do que ocorre em outros países?
No âmbito arquitetônico, como acontece também em outras áreas, o Brasil não é amigável a contratação de estrangeiros. Impostos altos e a proteção trabalhista quase inviabilizam as contratações. Mas isso é comum em quase todos os países, a não ser em ambientes como a Europa, dentro da comunidade, ou nos Estados Unidos, que possui acordos bilaterais com vários países. Ou seja, para o arquiteto brasileiro também é difícil trabalhar fora.
3) Na época em que se anunciou o projeto do Palácio da Dança, houve muita reclamação por parte de um grupo de arquitetos brasileiros que reclamavam da escolha por arquitetos estrangeiros. Essa resistência continua? Por quê?
Ainda existe e o motivo eram os honorários – altos para os nossos padrões – pagos pelo governo paulista. Por aqui, mesmo se recebesse os mesmos honorários, nenhum escritório usaria a mesma quantia para desenvolver o projeto, como faz o Herzog & de Meuron — que gasta muito dinheiro desenvolvendo pesquisa para cada projeto.
4) No Brasil, a arquitetura ainda é vista como privilégio, um luxo que apenas os ricos podem ter. Quais os principais obstáculos para que se invista em arquitetura no Brasil e para que esta possa estar ao alcance de mais gente?
Espelhando as nossas desigualdades, a melhor face da arquitetura brasileira atua de maneira exemplar nos extremos, criando, em uma ponta, projetos cinematográficos para uma parte esclarecida da elite, e na outra ponta, atendendo as urbanizações de algumas favelas, como no caso da gestão da Elisabete França à frente da pasta da habitação da Prefeitura de São Paulo – o programa Minha Casa, Minha Vida é um desastre que não possui preocupações urbanísticas nem arquitetônicas. O que faz falta é o meio, o ambiente da classe média e o espaço público, que é resolvida pelo mercado e desejos de status ou pela ausência total do Estado.
Por Mariana Barros
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