Nos ambientes que tratam do avanço da ciência, da medicina e dos negócios da cannabis é comum ouvirmos a frase “o gênio não vai voltar pra dentro da lâmpada”, em referência ao caráter irreversível dessas conquistas. Pois na última semana tivemos no Brasil um episódio que ilustra a metáfora com perfeição, protagonizado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que tentou colocar o gênio na garrafa e seu deu mal. Apenas dez dias depois de restringir a prescrição da cannabis a casos muito específicos e limitados, o CFM voltou atrás e revogou sua desastrada resolução.
Ainda que o retrocesso tenha sido rapidamente contido, causa espanto ver o CFM, autarquia federal fundada em 1951, tentando usar a cannabis para fazer coro ao debate de costumes incentivado pelo candidato à reeleição para presidente. Para tanto, vejam só, achou razoável atropelar a autonomia profissional, a mesma que havia usado para justificar que médicos brasileiros prescrevessem cloroquina a pacientes de COVID, contrariando as melhores evidências científicas disponíveis à época e que, por sinal, seguem válidas. Infelizmente muitos desses doentes não estão mais aqui para reclamar.
“Os médicos devem ser os primeiros a defender a sua autonomia profissional de decidir o tratamento em conjunto como o paciente. A resolução do CFM segue a linha do arbítrio da resolução anterior, violando a autonomia do médico e o dever de usar os tratamentos autorizados pela legislação brasileira, conforme previsto no Código de Ética Médica”, afirmou Emilio Figueiredo, advogado na Rede Reforma e no escritório Figueiredo, Nemer e Sanches Advocacia Insurgente. Em nome dessa independência, inúmeros médicos prescritores se levantaram, ainda com a medida em vigor, para dizer que não a cumpririam. Uma desmoralização completa para a autarquia.
Coerente apenas no seu desrespeito à ciência (passemos, por ora, a escandalosa existência de médicos anti-ciência), a canetada do CFM restringindo a prescrição de cannabis para casos muito específicos, conseguiu desrespeitar milhões de pacientes, médicos, cientistas, empreendedores e ativistas que, ou se beneficiam das terapias com a erva, ou trabalham para ampliar o acesso a quem precisa. Ninguém esperava nada diferente, mas a medida anticientífica e, provavelmente, inconstitucional, mobilizou a sociedade, incluindo também parlamentares, jornalistas e formadores de opinião numa onda que ganhou as redes sociais, a imprensa e a ruas. “Dá impressão de que as decisões do CFM são mais orientadas por questões políticas do que técnico-científicas, como seria esperado de um órgão com tamanha responsabilidade”, declarou Tarso Araujo, diretor-geral da BRCANN (Associação Brasileira da Indústria de Canabinoides). Araujo fez questão de lembrar ainda que a associação sempre esteve à disposição do CFM para debater o tema e apresentar dados, evidências e estudos que contribuam para o avanço da medicina canabinoide no Brasil.
Antes de cancelar em tempo recorde a validade de sua própria medida, o CFM ainda tentou uma conciliação ao convocar uma audiência pública acerca do tema, aberta na última segunda-feira (24) com prazo até 23 de dezembro. Nesse período, torcemos para que o CFM entenda, finalmente, que não tem o direito de deixar sem remédio os pacientes que se tratam com cannabis. A sociedade brasileira espera que o Conselho não desrespeite novamente os milhares de profissionais de saúde a quem deveria representar. A consulta pública será oportuna, entre outras coisas, para que a autarquia aprenda que, já em 2019, apenas 45% das autorizações emitidas pela Anvisa foram obtidas por pacientes de neurologistas, neurocirurgiões, psiquiatras e neuropediatras, normalmente as especialidades que tratam epilepsia, a única condição para a qual a cannabis seria indicada, de acordo com a resolução agora abortada. Ou seja, a maioria dos pacientes cuja vida melhorou graças à planta estaria desamparada caso a medida permanecesse válida. Voltando à metáfora inicial, na história do gênio, sempre que alguém tenta levá-lo de volta à lâmpada mágica, acaba sendo desmoralizado pela astúcia do personagem. Nesse caso, o CFM foi humilhado pelos fatos e por uma sociedade que não aceita retrocessos em nome de um projeto político que já foi longe demais em seus ataques à saúde da população.