Na mesma semana em que um pai foi preso acusado de abuso sexual contra a própria filha, uma adolescente de 17 anos internada na UTI de um hospital, o Projeto de Lei 1904/2024, conhecido com PL antiaborto, que equipara o aborto após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio, teve o regime de urgência aprovado pela Câmara dos Deputados e, se nada mudar, pode a qualquer momento ser votado diretamente no Plenário, sem passar antes pelas comissões.
Um descalabro que, infelizmente, está longe de ser uma iniciativa isolada. Segundo levantamento exclusivo feito pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) a pedido da coluna, há 96 proposições legislativas – Projetos de Lei (PL), Projetos de Emenda Constitucional (PEC) e Projetos de Decreto Legislativo (PDL) – tramitando hoje no Congresso Nacional que atacam o direito ao aborto legal. “A partir de 2010, observamos uma ofensiva maior em termos de quantidade de propostas”, avalia Clara Wardi, assessora técnica do Cfemea e mestra em sociologia pela Universidade de Brasília, responsável pelo levantamento.
Clara atribui o cenário a um crescimento da extrema direita no país que é em grande parte fundamentalista e contra a laicidade do Estado. “O movimento não se restringe ao Brasil. É transnacional”, diz ela, reforçando que essa pauta de criminalização dos direitos de mulheres e meninas é uma das principais bandeiras desse movimento.
Entre as proposições legislativas, há, segundo ela, outras dezenas de “absurdos” como o Estatuto do Nascituro (PL nº 434/2021) e o PL nº 2490/2023. O Estatuto do Nascituro proíbe o aborto em qualquer situação e estabelece o chamado direito do embrião, o equiparando ao mesmo status jurídico e moral de uma pessoa, baseado na crença de que a vida tem início desde a concepção.
Já o PL nº 2490/2023 institui o protocolo “Ouça o coração. Não aborte”, que estabelece a realização do exame pela gestante antes da realização do aborto legal nos serviços de saúde. “É submeter a mulher à tortura”, afirma, com razão, Clara Wardi, que lembra que o projeto fez, inclusive, parte de uma portaria do governo Bolsonaro, a Portaria nº 2.282, de 27 de agosto de 2020. “O Estado de Goiás instituiu recentemente uma legislação nesse sentido, o que é bastante preocupante”, alerta, citando a Lei nº 22.537, de 11 de janeiro de 2024, que institui a chamada campanha de conscientização contra o aborto para mulheres no Estado de Goiás.
CRIANÇA NÃO É MÃE, ESTUPRADOR NÃO É PAI
Como já foi abordado nesta coluna, o Brasil vive uma epidemia de estupros. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, o país registrou, em 2022, o maior número de estupros da história. Foram cerca de 75 mil casos e as principais vítimas são crianças: 61,4% tinham até 13 anos. Cerca de 70% dos agressores são conhecidos das vítimas, o que faz com que esse crime seja cercado de silêncio, culpa e medo.
Nesse período, foram registrados 14.293 nascidos vivos de meninas com menos de 14 anos. Segundo Clara Wardi, a média é de 20 mil gestações anuais de meninas nessa faixa de idade e 74% delas são negras. “A falta de acesso ao aborto no Brasil também demonstra uma desigualdade racial e econômica muito grande”, frisa a especialista.
É importante lembrar que adolescentes com menos de 14 anos são consideradas, por lei, incapazes de consentir, o que torna qualquer ato sexual em que estejam envolvidas “estupro de vulnerável”. Nesses casos, o aborto é um direito garantido por lei e o Código Penal não fixa prazos para a interrupção da gravidez.
FAKE NEWS E PÂNICO MORAL
Segundo Clara Wardi, o crescimento de um fundamentalismo evangélico e de um conservadorismo católico no Brasil, além da propagação de fake news, que criam um pânico moral sobre o aborto, também estão por trás desse clima de retrocesso que vivemos há alguns anos. Uma ofensiva que vem sendo enfrentada pela sociedade civil com campanhas como a recém-lançada Criança não é mãe, elaborada por uma série de ONGs feministas como Cfemea, Cepia, Redeh, Anis e Criola.
Uma das reportagens que fiz e mais me emocionou foi com uma menina de 11 anos abusada pelo padrasto desde os 8 anos de idade. Como é comum nesses casos, a menina escondeu a gravidez, por medo da reação da mãe. Quando a mãe dela descobriu, ela já estava com 7 meses de gestação e teve a criança logo depois de um parto prematuro e perigoso, devido a sua pouca idade. Um pesadelo que deixou sequelas graves. O bebê, resultante do estupro, foi colocado para adoção e a vítima parou de estudar, entrou em depressão e, quando me deu a entrevista, amparada por um psicólogo e sob anonimato, desabafou que preferia ter morrido do que ter passado por isso.
As mulheres são a maioria do eleitorado (52,6%) no Brasil e o nosso voto tem sido considerado decisivo nas eleições. Mais do que nunca, é importante pesquisar, entender o posicionamento dos seus candidatos e candidatas, cobrando deles e delas avanços na garantia dos direitos de mulheres e meninas – e não o contrário. Um voto equivocado ou a omissão custam caro. Podem significar retrocessos e perversidades inimagináveis que, volta e meia, nos assombram, como o PL antiaborto.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos.