Entre 1980 e 1990, calcula-se que Jim Grant (1922-1995), o lendário diretor-executivo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), tenha salvado a vida de 25 milhões de crianças. Graças a sua mobilização, houve um grande investimento de recursos para a imunização e, em 10 anos, as taxas de vacinação globais das seis principais doenças que mais matavam crianças naquela época passaram de 20% para 80%. O empenho foi tão grande que pela primeira vez na história da humanidade uma guerra parou para que as crianças pudessem ser vacinadas.
“Duas vezes por ano, durante dois dias consecutivos, os conflitos armados em El Salvador cessavam completamente para que as crianças fossem imunizadas”, lembra Agop Kayayan, representante do Unicef na América Central nessa época, em entrevista a esta coluna. Segundo ele, a trégua na guerra civil se repetiu durante seis anos. Mais de 400 mil crianças foram vacinadas nos chamados “dias de tranquilidade”.
Essa história com final feliz está no livro “Jim Grant: o visionário do Unicef” (tradução livre) e em documentários, como “O dia em que o amor parou uma guerra” ou “A história não contada do Unicef” (tradução livre), todos ainda não disponíveis em português. É uma prova de que vacinas e lideranças como a de Jim Grant podem, sim, fazer a diferença.
Hoje, infelizmente, assistimos a inúmeros retrocessos no mundo todo nessa área. De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde e do Unicef, em 2022, 20,5 milhões de crianças em todo o mundo deixaram de receber uma ou mais vacinas por meio dos serviços de imunização de rotina. Os números melhoraram em relação a 2021, mas ainda são piores do que os de 2019, antes da pandemia de Covid-19.
No Brasil, até 2015, a cobertura de vacinas como a tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) e contra a poliomielite era acima dos 90%. Desde então, foi registrada uma tendência de queda na maior parte do país, que começou a ser revertida a partir de 2023.
“Os números do final do ano mostram uma pequena recuperação das taxas de vacinação”, diz o pediatra José Luiz Egydio Setúbal, presidente da fundação que leva o seu nome, integrante do Grupo de Coordenação e Articulação da Agenda 227, um movimento apartidário da sociedade civil em prol da garantia de prioridade absoluta para crianças e adolescentes.
Oito vacinas recomendadas do calendário infantil apresentaram aumento nas coberturas vacinais, segundo dados preliminares do Ministério da Saúde para janeiro a outubro de 2023, quando comparado com todo o ano de 2022. Para as crianças com 1 ano de idade, os imunizantes contra hepatite A, poliomielite, pneumocócica, meningocócica, DTP (difteria, tétano e coqueluche) e tríplice viral 1ª dose e 2ª dose (sarampo, caxumba e rubéola) registraram crescimento. Também houve aumento na cobertura da vacina contra a febre amarela, indicada aos 9 meses de idade. A alta foi registrada em todo o país.
“Houve uma melhora geral e uma melhora mais significativa no público de um ano de idade”, avalia Eder Gatti, diretor do Departamento do Programa Nacional de Imunizações (PNI), em entrevista à coluna.
De acordo com o Ministério da Saúde, o cenário é ainda mais animador quando comparado o número de municípios que atingiram as metas recomendadas de coberturas vacinais. De forma geral, houve um incremento de 1/3 no número de municípios que alcançaram a meta de 95% em vacinas fundamentais para o calendário infantil, o que representa mais de 2.100 cidades com esse índice de cobertura.
“É PRECISO AVANÇAR NA VACINAÇÃO CONTRA A COVID-19 EM CRIANÇAS”
Apesar das boas notícias, Setúbal avalia que os resultados “não foram tão bons quanto o esperado” e diz que ainda é preciso avançar na vacinação contra a Covid-19 em crianças. “As fake news em relação às vacinas contra a Covid em crianças funcionaram. Hoje, o maior desafio é convencer as pessoas que a Covid não acabou. Continua tendo muitos casos de crianças com Covid, principalmente crianças pequenas. São as pessoas que não foram imunizadas”, diz ele.
De acordo com o painel de cobertura vacinal contra a Covid-19 do Ministério da Saúde (com dados atualizados até 22/01/24), o índice de vacinação (três doses) na faixa etária de 6 meses a 2 anos é de apenas 5,8%; e na faixa etária de 3 a 4 anos, 6,1%.
“Precisamos aumentar essa cobertura”, reconhece Gatti. Segundo ele, a inclusão da vacina contra a Covid-19 no Calendário Nacional de Vacinação Infantil, em 1 de janeiro de 2024, deve contribuir para melhorar esse índice.
Em 2023, a Covid-19 foi responsável por 5.310 casos de síndrome respiratória aguda grave e 135 mortes entre crianças menores de 5 anos no Brasil. A incidência e a mortalidade pela doença nessa faixa etária vêm aumentando desde 2022. Desde o início da pandemia até novembro de 2023, foram notificados no país 2.103 casos de Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P), manifestação tardia da Covid-19, com 142 mortes.
Diante da iniciativa do Conselho Federal de Medicina (CFM) de abrir uma consulta para avaliar a opinião da classe médica a respeito da obrigatoriedade da vacinação contra a Covid-19 em crianças entre 6 meses e 5 anos incompletos, a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) se manifestou publicamente contra a medida. De acordo com o comunicado da entidade, “ao equiparar crenças pessoais à ciência, a pesquisa pode gerar insegurança na comunidade médica e afastar a população das salas de vacinação”.
“Imunizar é a melhor forma de prevenir doenças e é com certeza a estratégia mais barata de promoção de saúde em termos econômicos”, avalia Setúbal. A Fundação José Luiz Egydio Setúbal também emitiu nota apoiando a obrigatoriedade da vacinação de crianças de 6 meses a 5 anos.
Tempos estranhos esses de fake news, em que é preciso defender o óbvio.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos.