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Sobre polianas e cassandras

Temos a democracia porque não temos opção e porque seria suicídio considerar outra opção

Por Bolívar Lamounier
Atualizado em 30 jul 2020, 19h38 - Publicado em 24 jun 2019, 07h12

Bolívar Lamounier (publicado no Estadão)

As duas últimas décadas do século passado foram um período de polianas; Francis Fukuyama sentenciou que o mundo atingira o “fim da História”, com a consagração definitiva do Estado democrático. As duas primeiras do século 21 estão sendo uma época de cassandras: dia sim e outro também algum articulista famoso nos alerta para o iminente fim da democracia, com populismos autoritários alastrando-se por toda parte.

Em boa hora, no dia 15/12/2018, o jornal O Globo republicou uma importante entrevista da filósofa húngara Ágnes Heller, professora da City University of New York (Cuny), na qual a doutora Heller chutou o balde do cassandrismo com todo o vigor de que foi capaz. “Nossa única chance de sobreviver – ela disse – é preservar a democracia liberal.” Em vez de tergiversar, sublinhou o adjetivo liberal, frisando que tratava da democracia representativa, com todos os seus méritos e defeitos. E disse “nossa” para ressaltar que fala das sociedades civilizadas, respeitadoras do indivíduo e da liberdade, governadas por Estados constitucionais e pluralistas.

O torpedo disparado por Ágnes Heller tem um endereço certo: o regime declaradamente antiliberal do sr. Orbán, em sua Hungria natal, e, de quebra, as autocracias nada disfarçadas de Putin, na Rússia, e de Erdogan, na Turquia. Heller entende que o advento de tais regimes se deve à passagem da política baseada em partidos representativos de classes sociais a um outro padrão, fundado em sociedades de massas. Neste ponto, a análise da doutora Heller incorre em certo anacronismo, uma vez que o tema da sociedade de massas vem de longe: foi inicialmente abordado por Ortega y Gasset em seu A Rebelião das Massas, obra de 1926, e, no segundo pós-guerra, por numerosos cientistas políticos, principalmente americanos, entre os quais eu destacaria William Kornhauser, autor de The Politics of Mass Society (1959). Na perspectiva brasileira, o que importa é, porém, que nunca tivemos realmente um processo político fundado em interesses de classe, como o caso europeu invocado pela dra. Heller. Com a indispensável simplificação, nossa estrutura política sempre teve, no ápice, a casta patrimonialista atualmente concentrada em Brasília, formada por gente que não se peja em auferir remunerações 30 ou 40 vezes superiores ao salário mínimo e mais uma série de penduricalhos de duvidosa moralidade; e, na base, uma massa informe, assentada, primeiro, na escravidão e, agora, nas imensas aglomerações urbanas que dominam nosso cenário social. Em ambos os casos, o que caracteriza essa massa é a rarefação ou quase ausência de vida associativa, a carência de laços sociais mobilizáveis para a garantia de direitos e a demanda de políticas públicas.

O paradoxo brasileiro é que, apesar da pobreza generalizada e do poder exercido pela casta patrimonialista, logramos um grau razoável de desenvolvimento político, não sendo exagero afirmar que nunca fomos institucionalmente tão atrasados como as três nações citadas por Ágnes Heller. Dou-lhes minha ilustração favorita. No ano de 1881, o czar Alexandre III admitiu examinar a ideia de um conselho a ser eleito por assembleias provinciais, mas de caráter estritamente consultivo, sem chance alguma de incomodar o monarca. Tal proposta foi rotundamente rejeitada pelos conselheiros de Alexandre III. No mesmo ano, no Rio de Janeiro, o deputado Rui Barbosa atuava como relator da Lei Saraiva, que sistematizou nossas primeiras cinco décadas de experiência eleitoral.

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Esse pano de fundo histórico e a imensa diversificação da sociedade brasileira levam-me a crer, data vênia do cassandrismo reinante, que o propalado fim da democracia não está à vista. Recair numa ditadura unipessoal como a de Getúlio Vargas (1937-1945), ou mesmo numa mais institucionalizada como a de Augusto Pinochet no Chile, parece-me uma hipótese remota. E mais remoto ainda seria o desatino de tentarmos copiar o modelo chinês, no qual o Estado desregulamenta a economia, sem abrir mão de controlá-la em última instância, e exerce um férreo controle sobre as demais dimensões da sociedade. Não temos (thank God!) um Partido Comunista como o chinês nem teremos jamais uma cultura densamente permeada por componentes totalitários.

Estamos, então, no melhor dos mundos? Nem de longe. Temos a democracia porque não temos opção e porque seria suicídio considerar outra opção. Uma democracia incapaz, até onde a vista alcança, de impulsionar o crescimento econômico em bases sustentáveis, livrando-nos da famigerada “armadilha da renda média”.

Tínhamos, antes de 1964, uma estrutura partidária em tese capaz de se fortalecer e evoluir. Hoje, quem afirma isso o faz por sua conta e risco. Ter 30 ou mais partidos – o maior dos quais não consegue eleger 20% da Câmara federal – e não ter nenhum é mais ou menos a mesma coisa. Chegando a esta constatação, é difícil sucumbimos inevitavelmente ao chavão: a reforma política é a mãe de todas as reformas. Mas de onde virá a energia para uma reforma de verdade? Não vejo como lograremos tal objetivo enquanto não tivermos lideranças robustas e dotadas de exemplaridade nos Três Poderes da República.

Por último, mas não menos importante, somos um país sem elites na acepção séria do termo. Não me refiro, aqui, aos meros agregados estatísticos que compõem o ápice das diferentes pirâmides da sociedade: os empresários mais destacados, os principais líderes sindicais, etc. Falo de grupos reais, autônomos em relação tanto aos partidos como ao governo, que dediquem uma parte de seu tempo ao exame crítico das políticas públicas e da situação geral do País. Grupos capazes de balizar em alguma medida o andamento da sociedade, zelando por aquilo que em priscas eras designávamos como o “bem comum”.

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