Capítulo 3
O ROLEX DE OURO E O CAVALO AMIR
O garçon com a bandeja de bebidas chega junto com o ponto final da frase em que João Figueiredo enfiou no mesmo balaio todos os jornalistas e todos os picaretas. Capturo a terceira taça de vinho (branco, alemão, não é dos que mais aprecio mas vai assim mesmo), tomo o gole que encoraja e pergunto se alguém ali conhece a história do almoço entre o general-presidente Artur da Costa e Silva e a Condessa Pereira Carneiro, dona do Jornal do Brasil. O silêncio coletivo responde que não.
Capricho na pose de quem se reunia diariamente com a condessa que nunca vi e conto o episódio. Costa e Silva foi almoçar na sede do JB para queixar-se de publicação de textos ou imagens que não deixavam o governo bem no retrato. Concluída a chiadeira, a anfitriã ponderou que o jornal só publicava críticas construtivas. “Mas eu não quero críticas construtivas”, encerrou o assunto o visitante. “O que eu quero é elogio”. Fim do caso.
Figueiredo faz de conta que não pegou o espírito da coisa. A platéia se divide: uns fingem que não ouviram direito, outros fingem que não prestaram atenção. Só Carlos Maranhão e eu estamos sorrindo ─ educadamente, como o homenageado da noite acha que é de praxe na comunidade dos picaretas e jornalistas. Jogo empatado, cumprimento-me.
Ele vai buscar o desempate percorrendo uma curva que tem o quilômetro zero na sucursal carioca do Serviço Nacional de Informação e desemboca na frente da guerra contra a imprensa.
─ Quase todo mundo no Brasil age com leviandade, até o SNI ─ começa o general da cavalaria com a surpreendentemente desabonadora menção à sigla que chefiou durante os cinco anos do governo Ernesto Geisel.
O que deu na cabeça dele?, fico intrigado.
─ Em 1964, forjei um informe sobre o Carlos Lacerda, que era governador da Guanabara, só para ver o que dava ─ ele logo se explica. ─ Deixei o papel em cima da mesa e esperei. Não demorou uma semana para que o serviço de informações da Marinha mandasse para a gente o mesmo informe. Nem mudaram meu estilo, só acrescentaram meia dúzia de bobagens. Embarcaram no que eu tinha inventado. Outros também embarcaram e aquela invenção acabou ganhando o carimbo de altamente confiável. Como é que pode?
A frase seguinte avisa que a curva terminou:
─ Se no SNI é assim, não quero nem pensar em como é na imprensa.
Também não quero nem pensar em como foi a coisa no SNI.
Um superlativo “boa-noite” anuncia a chegada de Naji Nahas. Alto, corpulento, hasteado na porta da sala principal, o aventureiro que chegou do Líbano a bordo de 50 milhões de dólares só vai quebrar a Bolsa do Rio daqui a dois anos. Como ninguém sabe disso, a imprensa o qualifica de “megainvestidor”. Ele é um dos 25 convidados que se espalharão por cinco mesas redondas já arrumadas para o jantar na sala ao lado da piscina da mansão na Rua Zarabatana que ocupa todo o quarteirão ao lado do latifúndio do Jockey Clube de São Paulo.
A noite promete. Já estão lá figuras como o empresário Mathias Machline, o economista Affonso Celso Pastore, o deputado Erasmo Dias ou o ex-ministro Amaury Stabile. A chegada de Naji Nahas reforça a bancada árabe, formada até agora pelos deputados Wadih Helu e Ricardo Izar e pelo empresário Nacib Mofarrej. Estão a caminho outros patrícios amigos de Georges Gazale, empresário do setor de tecidos e, sobretudo, melhor amigo de Figueiredo.
Carlos Maranhão vigia o avanço de Naji Nahas com cara de quem está procurando um esconderijo para a carteira. O risonho libanês passa pela imprensa sem escalas, estaciona diante do homenageado e, com a educação que para o ex-presidente identifica os picaretas e os jornalistas, aperta-lhe as mãos, aproxima a boca do ouvido de Figueiredo e murmura:
─ Tenho um presente para o senhor. Espero que goste de relógio.
Não é um relógio qualquer. É um Rolex. E de ouro. E o presenteado não estava em São Paulo para festejar o dia do aniversário, a léguas de distância no calendário, mas para uma maratona de exames médicos. Deve ter gostado muito da oferenda.
Naji é um moço esforçado, mas ainda um amador nesse ramo, informa o olhar superior do profissionalíssimo Gazale, um campeão na arte de presentear. Foi com um presente que conquistara, oito anos antes, a confiança e o afeto do general arredio que Geisel elegera para conduzir a última etapa da era militar. Um presente tão bem escolhido que transformou em amigos de infância dois homens com mais de 60.
─ Como é mesmo o nome do cavalo que o senhor deu de presente ao Figueiredo? ─ pergunto.
─ Amir ─ diz Gazale. ─ Quer dizer “príncipe”, em árabe.
A voz de Figueiredo ecoa três metros atrás do anfitrião.
─ Nunca fiquei tão irritado como no dia em que invadiram a Granja do Torto para tirarem fotos das baias e dos cavalos ─ aparteia.
Ele devia estar ouvindo a conversa.
─ Eu estava pensando em cavalos ─ ele corrige o que estou pensando.
A três meses da posse, Figueiredo confessou numa entrevista que preferia cheiro de cavalo a cheiro de povo. A continuação da noite das arábias mostraria que, depois da passagem pela Presidência da República, ele trocaria o Palácio do Planalto por qualquer montaria.