Há 50 anos, um pugilista brasileiro conquistou pela primeira vez um título mundial. Em Los Angeles, Eder Jofre nocauteou no 6º assalto o mexicano Eloy Sanchez. Ao longo da década de 60, seus extraordinários desempenhos no ringue o transformaram no maior peso-galo de todos os tempos.
TEXTO PUBLICADO EM 2008 NA REVISTA WELCOME
Eder, um lutador
Fábio Altman
Eder Jofre está com 71 anos de idade. Tem 57 quilos, apenas quatro a mais do que os 53 quilos de 1957, quando se tornou profissional. O andar acelerado, de passos curtos, parece ditar o ritmo de alguém com pressa para chegar. A firmeza do abdome, ao pular corda e bater no saco de areia, impressiona os que o vêem nas três vezes por semana que vai à academia Master, no bairro dos Jardins, em São Paulo. Apenas os raros vincos no rosto traem o passar do tempo do setuagenário campeão. Vegetariano desde a adolescência, continua a não comer carne. “Caramba, o tempo voou”, diz, ao ser confrontado com a efeméride dos 50 anos de esporte como profissional. Caramba! A expressão “caramba” pontua as frases de um homem que, na maturidade, está cada vez mais com a cara dos tios, do clã Zumbano, fundadores do boxe no país. Está parecido fisicamente, mas também no humor paulistano, macarrônico, italianíssimo. Mike Tyson tem fama de grosso e truculento. Muhammad Ali, apesar de divertido, era arrogante no apogeu. Outros tantos mal conseguiam se expressar. Eder, filho de família humilde, bem-humorado. “Essa foto vai ser colorida? Peraí, tenho que pôr perfume”, brinca. Outra: “Entrevista às 15 horas? Não pode ser às 3?”. Dispara as tiradas e, mesmo as não muito engraçadas, ele finaliza com um sorriso amplo.
Longe dos ringues, o campeão, dono de dois títulos mundiais – nas categorias galo e pena -, não tem saudade da fama. Gosta de ficar em casa, vendo televisão em companhia da mulher, Aparecida, a Cida. Aprecia a vida em família.
Vez ou outra, a caminho da cozinha ou dos quartos, pára para conversar com o retrato do pai, Aristides Jofre, e da mãe, Angelina Zumbano, ambos já falecidos, como se eles ainda vivessem. “E vivem, sim”, diz. Um dos filhos, Marcel, é assessor do deputado Aurélio Miguel, judoca medalha de ouro nas Olimpíadas de Seul. A filha, Andréia, é dona-de-casa. Nenhum dos dois seguiu o boxe, nenhum dos dois acompanha o boxe. “Saio na rua e poucos me reconhecem, um ou outro pede autógrafo, e só”, diz. “Isso não me incomoda. Muitos lembram mesmo do tempo em que fui vereador.” Com o neto, Axel, adolescente de 14 anos, ele esporadicamente rememora os tempos de glória. “Às vezes dá vontade de voltar a lutar, mas, quando lembro de todo o sacrifício de treinar de madrugada, na chuva, no frio, aí desisto na hora”, resume. “Sabe do que sinto falta mesmo?”, pergunta. “Da infância no parque Peruche, de caçar passarinho, de roubar pêra, de nadar na biquinha, de montar arapuca.”
Bem-vindo à mente de Eder, para quem a brincadeira e o bom humor talvez tenham sido o antídoto à violência do esporte. Uma breve conversa com o Galo de Ouro parece nos levar ao tempo da ingenuidade, dos anos 1960 e 1970, sem fortunas, sem marketing, sem a virulência dos dólares. No futebol, depois de Pelé, houve os Ronaldos e Romário, houve o Brasil outras duas vezes campeão do mundo, com jogadores enriquecendo no exílio. Na Fórmula 1, depois de Fittipaldi, houve Senna e Piquet, há Massa e Barrichello, catapultados pela máquina da Ferrari. No boxe, depois de Eder, brilharam Miguel de Oliveira e Popó, mas nenhum deles teve a aura e o tamanho de Eder Jofre. O mundo mudou, Eder muito pouco. Vêem-se nele, ainda hoje, as marcas de uma magnífica saga dos Zumbano-Jofre, que aprenderam a educar seus filhos com luvas. Se fosse possível traduzir Eder em uma única palavra, ela seria “simplicidade”.
Em um perfil de Mike Tyson, o jornalista americano David Remnick, editor da revista The New Yorker, definiu com mais elegância essa faceta atemporal e mágica do boxe, colada a Eder.
Assim: “Nos esportes coletivos – futebol, beisebol, basquete – existem astros individuais, existem rivalidades, mas, no frigir dos ovos, o esporte é o importante. O talento de um atleta de equipe costuma resultar do domínio de alguma invenção peculiar e relativamente recente: lançar uma bola de futebol entre duas traves, empunhar um taco de freixo polido, atirar uma bola dentro de uma cesta. O boxe é antigo, simples, solitário. Quase não há artifícios. As luvas acolchoadas e a bandagem e o esparadrapo embaixo mal protegem os lutadores: apenas impedem mãos quebradas e permitem mais socos, mais dor”.
Lições do pai
A memória da dor é a lembrança mais viva de Eder quando instado a visitar o tempo antigo, em que o Jofrinho, de apenas 1m64, virou profissional, a caminho de transformar-se em um dos mais completos boxeadores de todos os tempos, em qualquer categoria. “Você já levou um soco no fígado?”, pergunta. Crispa o rosto e repete a indagação: “Você já levou um soco no fígado?”. À resposta – não, felizmente –, Eder tenta descrever a estúpida sensação. “É horrível, você tem vontade de chorar, clama pela mãe, é quase desesperador.” Para as pessoas normais, serviria de alerta para não mais subir ao ringue. Para ele, contudo, pavor e dor são palavras que não rimam. “Se sentisse medo, não lutaria mais. Quando o gongo soa, anunciando um outro assalto, a dor desaparece.” Uma única vez em toda a sua carreira de 78 lutas e apenas duas derrotas, por pontos, Eder teve receio de voltar ao centro da lona. Foi contra Joe Medel, em agosto de 1960, em Los Angeles (vitória no 10º assalto, por nocaute), na luta que o qualificaria para a disputa do título mundial dos galos. No 9º round, Medel pegou firme, Eder sentiu o golpe, esteve para cair, quase desistiu. No canto, o intervalo de 1 minuto e meio e a voz pausada do pai, “Kid” Jofre, fizeram-no renascer. “Pai, não vai dar, tá doendo muito”, disse. “Vai sim, o povo brasileiro espera sua vitória, sua mãe tá ali embaixo. Bate firme que ele cai.” E caiu.
Ao relatar essa virada, a transformação da dor em coragem, Eder a atribui ao pai – “meu mestre, com todas as letras”. É um raro momento em que abandona a modéstia dos grandes por uma leve, levíssima auto-suficiência. “Dor mesmo quem sentiu foi o Medel. Estas mãos aqui são pequenas, têm dedos quebrados, mas sempre foram muito eficientes.” Ri e mostra-as. No auge da carreira, Eder as utilizava em outra atividade, o desenho. Aprendera a usar o lápis com o tio Waldemar, ele mesmo fora aprovado na Escola de Belas Artes e teve aulas com o pintor Aldemir Martins. Em 1959, criou a própria logomarca, o galo de ouro. “Era uma boa distração”, lembra, sem perceber o belo paradoxo de a mesma dezena de dedos socar e também criar arte, ainda que ao boxe se dê a alcunha de “a nobre arte”. Todos os membros da família Zumbano-Jofre – os Zumbano eram nove irmãos, hoje falecidos – alinhavaram suas vidas nessa defesa, a do pugilismo como esporte elegante e saudável, na contramão do que se diz dele. “Se tivesse outra origem, se minha mãe não fosse uma Zumbano, se ela não tivesse casado com um Jofre argentino, certamente faria outra coisa na vida”, diz. O quê? “Sei lá, talvez fosse desenhista”.
Veja a primeira e a segunda parte da entrevista com Éder Jofre.