CELSO ARNALDO ARAÚJO
A expertise da presidente como monitora de artes já tinha sido demonstrada na visita da finada Hebe ao Palácio do Alvorada – durante a qual, por muito pouco, ela não convocou o Inspetor Clouseau para investigar o súbito aparecimento do nome de uma certa Elenira num quadro da pintora Djanira ali exposto.
Ok, qualquer um pode tomar Djanira como Elenira ─ esta nunca existiu, a não ser na leitura apressada de Dilma, mas Djanira não é inconfundível. Agora estamos falando de Caravaggio, Michelangelo Merisi da Caravaggio, patrimônio da humanidade, membro do olimpo supremo de pintores de todas as eras, criador de estilo absolutamente próprio, revolucionário a seu tempo e para sempre.
Em cooperação com o governo da Itália, seis telas de Caravaggio, depois de expostas com grande sucesso em São Paulo e Belo Horizonte, agora fazem escala em Brasília ─ mais precisamente no Palácio do Planalto. E não é para menos: a anfitriã, detentora de uma alentada penacoteca ─ uma pinacoteca num pendrive ─ se diz caravaggista de carteirinha. Coube a ela, é claro, inaugurar a mostra, aberta ao público até domingo, dia 14.
Esperem: entre os presentes não está Carlinhos Brown? Sim, Caravaggio é do timbau. É a ele que Dilma se dirige, inicialmente:
“Sabe, Carlinhos, eu tô muito feliz de te receber aqui. Uma exposição dessa ela…”
Pausa. Construções sintáticas como “uma exposição dessa ela” já estão a merecer uma “instalação de dilmês” no Museu da Língua Portuguesa. Sigamos.
“Uma exposição dessa ela exige certos cuidados. Nós vamos ver seis obras de um grande, mas um dos maiores pintores, é, não só, que a Itália deu pro mundo”.
É a primeira vez que vêm à tona, no discurso de inauguração, as únicas três coisas que Dilma sabe dizer sobre Caravaggio: ele não só é um grande, mas um dos maiores pintores; e veio da Itália. Isso será repetido logo diante, para não deixar dúvidas e esgotar o assunto.
Mas por que Caravaggio no Planalto? É fácil explicar ─ menos para Dilma:
“Eu queria dizê que pra mim é um momento especial porque nós estamos aqui numa obra moderna, original, que é o Palácio do Planalto. E ao mesmo tempo estamos recebendo seis telas dum dos maiores pintores”.
Hum. Certamente terá a fã número 1 de Caravaggio tentado estabelecer uma dicotomia temporal entre a obra contemporânea do mestre Niemeyer e as seculares, do mestre italiano. Uma espécie de “chiaroescuro” entre dois momentos da história das manifestações artísticas humanas. Sabe um quadro de Velázquez no Masp da Avenida Paulista? De nada, presidente. Mas esse “estamos aqui” e “ao mesmo tempo” ficou muito esquisito.
Já está achando que Dilma entende tanto de Caravaggio quanto Carlinhos Brown? Você se surpreenderá ao ouvir a porção Robert Hughes da presidente, desafiando até o state-of-the-art da história da arte:
“Que tem gente que diz que (Caravaggio) é do barroco. E eu, pessoalmente, acho que ele é maneirista”.
Hum, hum. Esse “é do barroco” já soa como a versão barraco de quem não sabe o que é ser barroco. E o “gente que diz” inclui aí os maiores críticos de arte do mundo. Bem, se Dilma não quer que Caravaggio seja barroco, azar dos barrocos e de Caravaggio. Agora, se a crítica búlgara “acha” que ele é maneirista, ou seja, um representante do maneirismo, existe aí um pequeno problema cronológico. O dia foi corrido, ela não deve ter conseguido decorar bem a ordem dos termos. Como se ensina nas aulas de arte do ensino médio – se bem que isso pode ter mudado, não sei ─ Caravaggio foi justamente quem deu nova vida à pintura italiana rompendo os artifícios da velha escola maneirista. Ele opôs corpos reais, na bicromia claro-escuro, aos fantasmas maneiristas ─ figuras etéreas, ectópicas. Nas pinturas dele, santos ─ como o São Jerônimo exposto no Planalto ─ ganharam cara de gente comum. É o caso de dizer, Dilma: Caravaggio não foi, de maneira alguma, maneirista. Ao contrário.
Mas a aula de nossa guia não terminou. Depois de desafiar os historiadores, ela retorna ao conceito inicial, desta vez com um trocadilho sábio sobre o mestre do claro-escuro.
“Ele é, sem sombra de dúvida, um grande pintor”.
Perceberam o alcance do jogo de palavras? Claro, escuro, sem sombra, sem dúvida…
Faltava, porém, o toque mais pessoal da admiradora ─ ponto alto da apresentação. Sim, críticos também podem ter suas preferências:
“Eu queria dizê que ele é um dos pintores que na minha vida mais me impressionaram”, como se fosse possível que Caravaggio tivesse impressionado Dilma na vida de Marco Aurélio Garcia. Prossegue, mas vai complicar um pouco:
“Acho que ele tem um, uma própria, a vida dele é altamente dramática e, pra não dizer, em alguns aspectos, trágica”.
Dilma poderia estar falando de 98% dos pintores e artistas do milênio passado, sobretudo entre os séculos 15 e 19. Caravaggio tem algo especial:
“Mas ele foi sempre um grande, um grande (pausa dilmística)… degustador da vida. E isso tá expresso em cada pintura que ele nos legou”.
Claro, o homem inconvivível, que andava de cidade em cidade procurando briga, agredindo e sendo espancado, e que morreu aos 39 anos, da soma dos flagelos que recebeu, era um “degustador” da vida, na visão de Dilma e em “cada pintura que ele nos legou”. Veja apenas o “São Jerônimo que escreve”, exposto no Planalto: a caveira pousada sobre o livro faz parte do menu-degustação de Caravaggio, que também foi fio-condutor de outro submovimento, o tenebrismo.
No fim, apesar do momento festivo, não podia faltar uma bronca da dona da casa:
“Lamento,viu embaixador, que a que eu mais gosto não tenha vindo, que é o Cupido Adormecido”.
Taí, título fácil de ser decorado. O quadro, de fato, é uma beleza ─ se bem que quem realmente gosta e entende um tantinho de arte nunca usaria um “mais gosto” em relação à pintura de um grande mestre.
Atenção: a esplendorosa mostra Caravaggio no Palácio do Planalto só vai até domingo. Antes de sair de casa, certifique-se de que o horário escolhido não cai no plantão da guia Dilma.
PS: Acabo de me dar conta, numa segunda leitura da transcrição do video (sim, o dilmismo exige pesados sacrifícios), de um detalhe que confirma a absoluta e categórica falta de intimidade entre a crítica búlgara e Caravaggio: durante todo o discurso de inauguração da mostra de “um dos maiores pintores”, ela não menciona uma única vez o nome de Caravaggio. Nem certo, nem errado. Nenhuma vez.
Tenho a impressão de que, na história da República, em qualquer campo da atividade humana, jamais um presidente da República tenha inaugurado alguma coisa ou homenageado alguém sem mencionar o nome próprio da coisa ou da pessoa.
Ou não decorou ou não sabe como se pronuncia Caravaggio — ou é um fenômeno de elisão, próprio do dilmês.