Publicado na versão impressa de VEJA
J. R. GUZZO
Quando for escrita com mais calma, em algum momento do futuro, a história das horas de tormenta que vive hoje o governo Dilma Rousseff, é provável que um ou outro cronista mais atento às pequenas e grandes misérias da política brasileira chame atenção para um instante de comédia pura neste gravíssimo debate sobre o impeachment da presidente da República. A pátria, nada menos que a pátria, está vivendo uma das mais espetaculares tempestades de sua existência recente, ou pelo menos é isso que se ouve dia após dia ─ e de repente somos informados de que a deposição da presidente, antes de qualquer outra coisa, tem de passar pelo cartório.
Isso mesmo: pelo cartório, como se faz para vender um carro usado ou tirar uma licença de camelô. No caso, por instrução do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, o jurista Hélio Bicudo, autor do mais ilustre pedido de impeachment ora em circulação no território nacional, teve de levar de volta a São Paulo a papelada que tinha entregue ao Poder Legislativo, para registrá-la no 4º Tabelionato de Notas da Capital. Depor a presidente da República, neste país, exige firma reconhecida, carimbo, assinatura do tabelião. Eis aí, em toda a sua majestade, o Brasil como ele é. Não é só isso, felizmente, porque existe vida inteligente fora do cartório. Mas sem isso não se faz nada.
O futuro próximo de 200 milhões de brasileiros vai ser afetado diretamente pela imensa decisão que o Congresso Nacional tomará, de um jeito ou de outro, em relação ao mandato de Dilma. Mas aí está: ou se passa no cartório ou a coisa não anda. O presidente da Câmara, descrito como um dos homens mais poderosos da história moderna do Brasil, não pode fazer nada a respeito. O doutor Bicudo pode menos ainda. Aos 93 anos de idade, teve de ir em pessoa até o escrivão para provar que é mesmo o doutor Bicudo, e que a assinatura que colocou no seu pedido de impeachment não é falsa.
Sentimos muito, doutor, mas nesses casos, e sabe lá Deus em quantos outros mais, é indispensável a comprovação “presencial”; só com isso o documento passa a ser autêntico. É cômico, sem dúvida. Daria para dizer, também, que é um momento de estupidez em estado bruto, desses que explicam por que há tanta dificuldade na sociedade brasileira para se desfrutar por aqui uma vida mais racional, produtiva e coerente com as realidades deste século XXI. Naturalmente, parece que ninguém percebeu, mais uma vez, que estivesse acontecendo algo fora de propósito nessa história.
O país está simplesmente dopado pela burocracia ─ não é mais capaz de estranhar nenhum tipo de disparate quando é submetido a cenas explícitas de papelório demente. E, se alguém notou alguma coisa, o máximo que fez foi dizer a si mesmo: “Sim, pensando bem, talvez não faça o menor sentido o cidadão passar pelo tabelião antes de solicitar a demissão da chefe de Estado e de governo ─ mas e daí? O Brasil é assim mesmo”. O que temos então, no fim das contas, é a seguinte situação: despejar a presidente do Palácio do Planalto é obra dificílima, incerta e traumática, mas pode ser feita; fugir do cartório é impossível.
Ninguém está dizendo, claro, que os cartórios brasileiros deveriam ser extintos, como a chibata da Armada, os juízes de fora ou os títulos de visconde. O país precisa de documentos que tenham fé pública; não dá para as pessoas saírem por aí, com um pedaço de papel na mão, declarando que são donas de uma casa ou que nasceram no dia que lhes der na telha. Mas ninguém pode achar, também, que o Brasil vai ser um lugar lógico enquanto não resolver seu conflito com uma das mais agressivas, atrasadas e perversas burocracias existentes sobre a face da Terra ─ e da qual os cartórios são apenas uma parte.
A ditadura da burocracia, com Dilma ou sem Dilma, condena o Brasil a viver sempre como um país de segunda categoria. Atrasa o progresso, pune o mérito, arruína a competição. Anula os benefícios da tecnologia e hostiliza a iniciativa individual. Custa empregos, produção e renda. Treina os funcionários do Estado para agirem como idiotas. Para completar, entre outras desgraças, é um hino à desigualdade. Quem tem dinheiro sempre pode recorrer ao despachante ─ ou, no caso das empresas, sobretudo as maiores, a departamentos dedicados unicamente a defender-se do papelório oficial.
E os mais humildes, que vivem a aflição diária de estar “em ordem” com os documentos e não têm recursos para enfrentar essa penitência ─ nem tempo, pois precisam passar o dia inteiro no trabalho? Virem-se. Façam a fila.