Publicado na edição de VEJA desta semana
AUGUSTO NUNES
O filho de imigrantes portugueses nascido em Campinas já se havia incorporado à elite paulistana quando descreveu sucintamente, mal disfarçando o orgulho de quem vencera apesar de tudo, o universo cinzento de onde viera. Não tinha quaisquer semelhanças com o mundo luminoso que Júlio César Ferreira de Mesquita passara a frequentar:
”Descendo de modestíssimas famílias transmontanas que, com certeza, nunca puseram os pés plebeus nas escadas de mármore e nos tapetes vistosos e fofos dos suntuosos paços dos reis, em Lisboa. Os meus antepassados viveram e morreram esquecidos na longínqua província, talvez de enxada em punho, desde a madrugada até a noite, ao vento e à chuva cavando desesperadamente os seios ingratos da terra madrasta, para não morrerem de fome”.
No século 19, pouquíssimos estigmatizados pela miséria ancestral escapavam da condenação a uma vida não vivida. Júlio Mesquita redesenhou seu destino apoiado no pai, que prosperou como comerciante no Brasil, e numa extraordinária conjunção de talento, audácia, autoconfiança, ventos favoráveis e trapaças da sorte. Esses trunfos balizam a singularíssima trajetória reconstituída pelo biógrafo Jorge Caldeira nos quatro volumes de Júlio Mesquita e seu Tempo.
Até agora, relegado pela desinformação histórica a coadjuvante essencial, mas ainda assim coadjuvante, o primeiro Júlio na saga do Estadão como o criador de um jornal que a geração seguinte transformou na mais influente do século 20. Apoiado em pesquisas que consumiram 10 anos, Jorge Caldeira pôs as coisas no devido lugar. É injusto confinar o biografado no papel de pai do doutor Julinho. Cabe ao segundo Júlio, que comandou o Estadão ao lado do irmão Francisco entre 1927 e 1969, o honroso papel de filho de Júlio Mesquita.
O fundador da linhagem fez mais que demarcar um feudo a que os confeririam status de reino. Ele concebeu e consolidou o reino que viraria império com a expansão das fronteiras consumada pelos herdeiros. O homem que desprezava brasões e títulos nobiliárquicos, e por isso não conseguia enxergar-se no espelho como um genuíno barão da imprensa, provavelmente morreu sem saber que sua sala na redação era uma sala do trono.
Em 1888, quando começou a trabalhar no diário parido para divulgar a causa republicana, A Província de S. Paulo tinha 904 assinantes . Ao morrer em 1927, 48.638 leitores pagavam para receber em casa um exemplar de O Estado de S. Paulo. Nesse período marcado por inventos prodigiosos, empreendimentos arrojados e transformações extraordinárias, Júlio Mesquita fez do panfleto de duas páginas sustentado por um pequeno partido o portentoso diário independente e lucrativo.
O quarto volume da biografia é reservado à exumação do quadro econômico brasileiro desde a Proclamação da República até a Revolução de 1930. Os três primeiros resultam de escavações que, além de desenterrar informações que permitem contemplar com nitidez os avanços modernizadores que aposentaram o prelo e a rotativa antes de alcançar a idade adulta, desmoralizam a história oficial da República Velha que deturpa, camufla ou assassina a verdade.
Estudantes tapeados por historiadores preguiçosos, ignorantes ou simplesmente idiotas podem aprender com Jorge Caldeira, por exemplo, que Prudente de Morais fez mais que lidar com a Guerra de Canudos e sobreviver a um atentado. Ele foi o único democrata irrepreensível entre os presidentes da República Velha. Em contrapartida, sai de cena o Campos Salles que livrou o Brasil da falência para que suba ao palco um trapalhão arrogante que só não se fantasiava de Pedro III por falta de manto e cetro.
A leitura da obra ganharia em leveza se Jorge Caldeira não ultrapassasse com frequência a fronteira onde termina a informação abundante e começa a informação excessiva. É desnecessário, por exemplo, acrescentar tantos detalhes, citações e documentos ao trecho que relata a independência definitiva de Júlio Mesquita, consumada pela ruptura com Campos Salles, a quem era ligado por laços familiares e políticos.
Até o entardecer do mandato de Campos Salles, o protagonista da biografia foi dois em um: o jornalista visceral teve de disputar espaços na alma e no coração do personagem conviver com o político vocacional. A separação litigiosa que afastou o deputado Júlio Mesquita de velhos parceiros campanha abolicionista e de propaganda republicana revogou lealdades e compromissos que inibiam o homem de imprensa puro-sangue.
Livre de freios e constrangimentos, Júlio Mesquita dedicou-se em tempo integral à construção do jornal moderno. Nasceram no Estadão a supremacia da notícia, a pluralidade de opinião ou a reportagem de longo curso, inaugurada pelos cobertura da Guerra de Canudos pelo correspondente Euclides da Cunha. Foi também Júlio Mesquita quem determinou as diretrizes essenciais, o estilo solene e o tom contundente dos editoriais que, 100 anos depois, permanecem intocados.
Avesso a neutralidades medrosas, ele invariavelmente escolhia o caminho que lhe parecesse mais afinado com os valores cultivados desde a juventude. Em 1914, o editorialista em permanente estado de beligerância distanciou-se provisoriamente da frente doméstica para cobrir a Primeira Grande Guerra entrincheirado na redação. Na paz como na guerra, fosse qual fosse o lado escolhido, Júlio Mesquita se manteve obediente ao que pensava Júlio Mesquita.
Errou e acertou com a mesma convicção. Desancou Rodrigues Alves e Artur Bernardes com o mesmo entusiasmo esbanjado pelo cabo eleitoral de Rui Barbosa ou pelo combatente que trocou o sossego de aposentado para tentar suspender a sangrenta troca de chumbo desencadeada pela Revolução de 1924. Acusado de apoiar os revoltosos, foi preso por pecados que não cometera. Revidaria o castigo imerecido com chicotadas verbais que marcavam a fogo o lombo e a memória dos alvejados.
Só as noitadas de viúvo solitário à solta em Campinas lhe pareciam mais sedutoras que um dia na redação. Em confeitarias e hotéis que nunca hospedaram outros representantes da nobreza republicana, o amante de vinhos, mulheres e conversas com gente simples tomava o lugar do monarca. O grande homem era então tratado como grande figura. Os amigos enxergavam sobretudo um bom companheiro de farras e festas onde havia Júlio I,