O título com forte apelo comercial faria sentido se o brasilianista americano R. S. Rose tivesse confirmado em sua revisita ao passado que Filinto Müller, na vida real, fora tão sombrio, brutal e desumano quanto o personagem esculpido por desafetos extraordinariamente inventivos e jornalistas sem compromisso com fatos. A honestidade intelectual do autor resultou numa biografia que exuma não O Homem Mais Perigoso do País (The Most Dangerous Man in The Country, no original em inglês), mas “O Temido Chefe de Polícia da Ditadura Vargas”, como informa já na capa o subtítulo acrescentado pela editora.
Nada disso reduz a relevância da obra; ao contrário. O resgate do Filinto Müller de verdade oferece aos leitores a contemplação de uma espécie que se reproduz com impressionante velocidade nas ditaduras — quaisquer ditaduras — e tem por habitat natural as cercanias dos cativeiros: o homem que executa as ordens que vêm de cima. Sem jamais contestá-las, sem remorsos, sem crises de consciência, sem hesitação.
Até agora, o retrato oficial de Filinto Müller foi o desenhado em parceria por Assis Chateaubriand, um barão da imprensa que jamais respeitou limites éticos ou morais, e David Nasser, um ficcionista fantasiado de repórter. Já indignado com a recusa de Vargas em ordenar a deportação de uma jovem argentina com quem fora casado, Chatô tornou-se um copo até aqui de cólera ao receber a má notícia de um mero chefe de polícia. Decidiu vingar-se, e escalou para a missão o jornalista certo.
Para associar o alvo da fuzilaria à Alemanha hitlerista, Nasser acrescentou-lhe um segundo sobrenome teutônico e criou o supervilão Filinto Strubling Müller, desancado impiedosamente na série de reportagens publicadas na revista O Cruzeiro e depois reunidas no livro Falta Alguém em Nuremberg. O Müller forjado pelo jornalista tornou-se o único integrante do movimento tenentista expulso da Coluna Prestes (“por traição e covardia”). Também lhe foi atribuída a paternidade da ideia de deportar a judia alemã Olga Benário, mulher de Luiz Carlos Prestes.
Por determinação de Chatô, Nasser qualificou de “nazista” o sorriso de Müller. Era com esse sorriso, fantasiou o jornalista, que o esbirro de Vargas acompanhava com entusiasmo e prazer as sessões de tortura que ocorreram diariamente enquanto durou o regime de exceção. Hábil inventor de tipos, David Nasser fez do brasileiro de Mato Grosso uma versão piorada de Heinrich Himmler.
No livro de Rose, as fantasias são demolidas por fatos. Müller não foi expulso da Coluna Prestes pela simples razão de que a coluna não existia quando o tenente envolvido na revolução de 1924 desistiu de derrubar à bala o governo Artur Bernardes e exilou-se na Argentina. É verdade que o Estado Novo institucionalizou a tortura, e usou-a para estraçalhar o físico e a alma dos participantes da rebelião comunista de 1935 e do levante integralista de 1938. Mas a CPI criada no Congresso para apurar as violências registradas nos porões da polícia política terminou sem que algum depoente denunciasse a presença de Filinto Müller em alguma sessão de tortura, como participante ativo ou espectador.
Sobram evidências de que o biografado sabia que os métodos usados nos interrogatórios de quem guardava informações relevantes incluíam invariavelmente agressões selvagens e suplícios inverossímeis. Mas as atrocidades só começavam depois que o chefe encerrava o expediente e ia para casa jantar em companhia da família. Rose também demonstra que, por mais poderoso que fosse, um chefe de polícia jamais se atreveria a decidir se alguém seria deportado. No Estado Novo, tal atribuição era privativa do ditador.
Foi Getúlio quem impôs a Olga Benário Prestes a sinistra viagem que a levaria à Alemanha e ao campo de concentração onde seria assassinada. Coube ao chefe de polícia desincumbir-se de mais uma missão — com a habitual eficiência. Sempre que confrontado com perguntas sobre a face escura da Era Vargas, Müller repetia que apenas cumprira ordens. Quem fez da mesma frase um mantra foi Adolf Eichmann, o carrasco alemão sequestrado na Argentina em maio de 1960, julgado no ano seguinte por um tribunal israelense que o condenou à morte e executado em 1962.
“Era assim que as coisas eram, essa era a nova lei da terra, baseada nas ordens do Führer; tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis”, resumiu Hannah Arendt no extraordinário Eichmann em Jerusalém ─ Um Relato Sobre a Banalidade do Mal. “Ele cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia ordens, ele também obedecia à lei”. Todas as ditaduras são igualmente repulsivas, mas há um cósmico buraco negro a separar o III Reich e o Estado Novo.
Nem mesmo David Nasser acreditava que o banco dos réus de Nuremberg só ficaria completo se Müller estivesse lá. Não há semelhanças notáveis entre Filinto e Himmler, um assassino patológico. Mas, se também os prontuários dos dois não podem ser comparados, há visíveis traços comuns ao chefe de polícia de Getúlio e a Adolf Eichmann. Fosse qual fosse a ideologia do regime militar a que servissem, ambos fariam com aplicação e eficácia o serviço determinado pelos superiores hierárquicos.
Depois de duas derrotas na eleição para o governo estadual, Filinto Müller conformou-se com o papel de senador vitalício por Mato Grosso, que acumulou com o comando do PSD regional. Foi líder do governo Juscelino Kubitschek, aliou-se aos militares em março de 1964, conviveu amistosamente com Castello Branco, deu-se bem com Costa e Silva e acabou encontrando em Emilio Médici o presidente que se juntaria a Getúlio no altar dos seus santos particulares. Médici encerrou a orfandade política amargada por Müller desde agosto de 1954.
O líder do governo no Senado tinha 73 anos quando embarcou num avião da Varig, em 1972, e decolou rumo a Paris em companhia da mulher, Consuelo, que esteve a seu lado em todas as viagens feitas depois do casamento, e do neto Pedro, de 16 anos. A poucos minutos do aeroporto de Orly, um incêndio provocou o mais terrível acidente da história da aviação brasileira. A presença de um punhado de celebridades a bordo obrigou Filinto Müller a dividir com outros famosos o espaço jornalístico reservado à tragédia.
Ele não foi o número 1 sequer nas edições que registraram a morte do civil mais influente do governo do general Médici ─ um período ditatorial tão indissociável da tortura e da violência política quanto os tempos do Estado Novo. Müller se foi sem jamais ter admitido que nem todas as ordens devem ser cumpridas.