ARTIGO PUBLICADO NO ESTADÃO DESTA QUARTA-FEIRA
Joe Nocera, do New York Times
Uma jovem imigrante, sem privilégios e sem dinheiro, alega que foi estuprada no trabalho. O homem que ela acusa de tê-la estuprado ─ rico, famoso e poderoso ─ está em um avião prestes a decolar para regressar ao seu país. O país é o mesmo que, durante décadas, impediu que Roman Polanski fosse processado pelo estupro de uma menor nos EUA. Imediatamente, os detetives o atraem para fora do avião e o prendem.
Agora que ele não pode fugir, os promotores dirigem sua atenção para a vítima. Começam a investigar seu passado, pois o caso se baseia em sua credibilidade. Em apenas seis semanas, montam um relatório devastador sobre o seu passado, repleto de estranhas incoerências, mentiras deslavadas e a possibilidade de ela esperar lucrar com o suposto estupro.
Os promotores não perdem tempo informando desses fatos os advogados do homem. E, em pleno tribunal, contam ao juiz o que descobriram, e ele revoga a prisão. Embora o caso ainda não tenha sido suspenso, quase seguramente será.
Nos dias que se passaram desde a espantosa reviravolta do caso, muitos franceses levantaram-se contra a injustiça do procedimento: “Vimos Dominique Strauss-Kahn humilhado, algemado, arrastado para a sarjeta”, afirmou o escritor Bernard-Henri Levy ─ tudo isso porque Cyrus Vance, o procurador-geral do Distrito de Manhattan, preferiu acreditar “numa camareira de hotel”.
Ao mesmo tempo, nos EUA, o colapso do caso provoca um tiroteio entre ex-promotores e advogados especializados em defender crimes de colarinho branco, que criticaram Vance, em particular, por indiciar Strauss-Kahn antes de conhecer melhor a história da vítima.
Juro que não entendo o que Vance fez de errado. Ao contrário. O suposto estupro da mulher foi gritado aos quatro ventos, com o respaldo de provas. A rápida decisão de indiciar fez muito sentido, tanto em termos legais quanto práticos. Depois, enquanto a credibilidade da vítima desmoronava, Vance não tentou fingir que ainda tinha um ás na manga, como inúmeros promotores teriam feito.
Levy, outro membro da elite francesa, parece particularmente enraivecido pelo fato de Vance não ter feito automaticamente uma exceção com Strauss-Kahn, considerando sua extraordinária posição social. Mas é exatamente por isso que Vance deve ser aplaudido. Uma mulher sem nenhum poder fez uma acusação convincente contra um homem dotado de enorme poder.
Quanto à humilhação de Strauss-Kahn, algo realmente feio aconteceu naquele quarto de hotel. Se a pior coisa que ele sofreu foi a exposição pública, alguns dias em Rikers Island e umas manchetes asquerosas, não precisamos nos penitenciar por isso. Ah, sim, ele foi obrigado a renunciar à direção de uma instituição em que o assédio sexual era, ao que se afirma, desenfreado. Não é horrível? A questão é: Os EUA são um país que professa a igualdade de tratamento de todos diante da lei. Muitas vezes, não é bem isso o que acontece. A julgar por seus recentes escritos, Levy prefere viver em um país onde as elites raramente são chamadas a encarar as suas responsabilidades, onde os crimes contra as mulheres costumam ser perdoados com uma piscadela e onde as pessoas sem dinheiro ou posição social são tratadas como nulidades, de acordo com o que a classe dos franceses endinheirados julga que elas são.
Subscrevo sem ressalvas o que escreveu Joe Nocera. (AN)