Publicado na edição impressa de VEJA
ROBERTO POMPEU DE TOLEDO
O Homem que Amava os Cachorros, do cubano Leonardo Padura, recentemente lançado no Brasil, distingue-se como grande romance por dois motivos principais: (1) encarna o milagre da ficção e (2)mostra como o sonho do século XX de uma sociedade justa e igualitária, contido nas revoluções comunistas, virou pesadelo. O livro trata do assassinato de Leon Trotsky, no México, pelo espanhol Ramón Mercader, a mando de Stalin. Aqui começa o milagre da ficção, quando conduzida por mãos hábeis: acompanha-se com atenção sôfrega da primeira à última das 589 páginas do livro uma história cujo desfecho já se está cansado de conhecer. Mas o milagre seria pouco, se fosse só esse. O principal é fazer a História, a história de verdade, ressurgir de forma mais viva, mais convincente, e mais “real” do que nos livros dos historiadores. Isso é para os ficcionistas de primeira linha. Para citar dois outros exemplos de autores vivos, não há tratado que mostre melhor o estranhamento entre raças na África do Sul do que o romance Desonra, de J.M. Coetzee; e não há história da II Guerra Mundial que mostre a miserável realidade da retirada de Dunquerque como o romance Reparação, de Ian Mcwen.
Leonardo Padura é um escritor que vive em Cuba, não quer sair de Cuba, mas que se permite ser crítico do regime e a quem o regime permite que viaje ao exterior (recentemente esteve no Brasil). Talvez seu caso antecipe tempos que estão por vir; ou talvez ilustre circunstâncias que o regime não tem mais força para conter. O Homem que Amava os Cachorros reconstrói em capítulos alternados a trajetória de Trotsky, desde que, expulso da União Soviética, dá início à sua peregrinação de exilado, até a parada final no México, e a de Ramón Mercader, desde que, muito jovem, integrado aos batalhões comunistas, se engaja na Guerra Civil Espanhola. Ao mesmo tempo em que obedece a uma rigorosa observância dos fatos, em suas linhas gerais, das datas e dos locais, a mão do ficcionista encarrega-se de imaginar diálogos e de intuir sentimentos, bem como de vestir os personagens com roupas que muito bem poderiam ter usado e fazê-los beber os drinques e fumar os cigarros que poderiam muito bem ter bebido e fumado. O resultado é que a história deixa de ser matéria morta, deixa até mesmo de ser passado, para acontecer de novo. Eis o milagre em seu esplendor.
Trotsky estava marcado para morrer desde o momento em que personificou a oposição a Stalin na sucessão de Lenin, mas sua aniquilação será precedida, num ritual macabro, pela aniquilação de seus seguidores e dos membros de sua família. Enquanto isso Mercader era preparado com método que inclui a adoção de falsas identidades e o assassinato de um mendigo, para treinar-lhe as habilidades de assassino. Isso e mais os julgamentos fabricados, as humilhantes confissões, os expurgos e os massacres cumprirão duas funções: não deixarão resquício de oposição ao todo-poderoso senhor do Kremlin e ferirão de morte, para sempre, as credenciais morais do regime dos sovietes. Essa derrocada é dissecada passo a passo, no livro, com o talento de quem, como todo bom escritor, tem horror ao panfleto e sabe que nada supera, em contundência, a narração pura e simples.
Mas não é só o comunismo em sua versão soviética que desmorona no livro. É o sonho comunista como um todo. Sobra até para Trotsky, “com seu fanatismo obcecado e seu complexo de ser histórico”, como diz um personagem. E sobra para Cuba. Um dos estratagemas do autor, na complexa construção do livro, foi inserir, em adição às histórias paralelas de Trotsky e de Mercader, uma terceira história, que se passa em Cuba entre os anos 1970 e o início dos anos 2000, na qual um escritor frustrado, a partir do encontro com um misterioso personagem, se esbate com a ideia de narrar a perseguição e o assassinato de Trotsky. O sonho cubano vai de permeio virando miséria, e isso, para maior crueza e verossimilhança do relato, de uma perspectiva ao rés do chão, que não contempla senão o dia a dia de anônimos habitantes da ilha, e a vida como ela é. No fim do livro, quem lá chegar verá, o sonho cubano literalmente desaba, como desaba o telhado de uma casa na cabeça de seus moradores.