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A guerra da Ucrânia e o fantasma de uma crise alimentar global

O impacto da guerra Rússia-Ucrânia nas cadeias alimentares trazem alerta global para riscos de insegurança alimentar e protecionismo.

Por Niels Sondergaard, Amanda Araújo Pinto e Marcos Sawaya Jank
Atualizado em 5 jul 2022, 13h18 - Publicado em 28 mar 2022, 11h20
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  • Na última semana, David Beasley, diretor executivo do Programa Mundial de Alimentos da ONU (World Food Programme), entoou o alerta de que a guerra entre a Rússia e a Ucrânia pode desencadear uma crise de grande impacto sobre a segurança alimentar de diversos países, em proporção não vista desde a Segunda Guerra Mundial. Tal preocupação, também compartilhada por diversos especialistas, se justifica pois os dois países envolvidos no conflito são grandes exportadores de produtos agroalimentares — juntos, a Rússia e a Ucrânia respondem por 27% das exportações globais de trigo, 18% de milho e 77% do óleo de girassol.

    Apenas três cereais — arroz, trigo e milho — respondem por mais de 40% da ingestão de calorias do mundo. O trigo, sozinho, representa 20% e a escalada imediata de preços desse cereal em nível global tem gerado preocupações, principalmente de países altamente dependentes da importação de alimentos que já vinham enfrentando a alta de preços desde o início da pandemia da covid-19. A relação entre estoques e consumo global de alimentos dos grãos já estava baixa havia tempos, devido a diversos fatores conjunturais e climáticos que  afetavam as cadeias de produção nos últimos anos, elevando preços.

    Com a guerra, já se verificam impactos significativos na produção e no escoamento de produtos e a maior incerteza diz respeito à capacidade de colheita em curto prazo. Estima-se que 30% das terras agricultáveis na Ucrânia estão dentro da linha da batalha, com interrupção imediata de produção. O redirecionamento de combustíveis e mão de obra para uso das forças armadas certamente neutraliza a capacidade de plantio.

    A logística representa outro desafio preocupante. Tanto a Ucrânia como a Rússia escoam mais de 90% da sua produção de grãos por meio de portos no Mar Negro. Hoje, esse caminho é palco de guerra e a Rússia tem bloqueado todo acesso aos portos ucranianos. A Ucrânia tem uma extensa rede de ferrovias, mas insuficiente para escoar os enormes volumes de grãos produzidos no país. Os exportadores russos, por sua vez, sofrem com sanções internacionais que bloquearam o seu acesso aos sistemas de pagamentos, além da exclusão por empresas marítimas ao redor do mundo.

    Como consequência, o Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas já estima que o efeito de sanções na Rússia e as suspensões das exportações da Ucrânia paralisaram 13,5 milhões de toneladas de trigo e 16 milhões de toneladas de milho nos dois países.

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    Para além dos impactos diretos causados pelo conflito, uma série de consequências indiretas e circunstâncias preocupantes precisam ser levadas em conta.  O preço do transporte marítimo já se elevou em 70% e pode até triplicar nos próximos meses, segundo informações de mercado. A alta do petróleo e a consequente elevação do preço da energia também influencia todos os elos das cadeias agroalimentares globais.

    O mercado de fertilizantes, dos quais a produção de grãos no plano global é dependente, tem passado por aumentos históricos. Para além do encarecimento do gás natural usado em sua produção, a Rússia e Bielorrússia são produtores notáveis, e as sanções contra estes países levam a preocupação de escassez de insumos agropecuários ao plano internacional — o que impacta diretamente a produção brasileira, revelando a complexidade dos sistemas agroalimentares globais.

    O conflito ainda pode gerar novas medidas de restrição ao comércio. Entre 2008 e 2012, em um período que ficou conhecido como “boom de commodities”, a elevação do preço mundial de alimentos levou alguns exportadores a impor restrições, o que colocou países importadores líquidos em uma situação de alerta. A alta de preço dos alimentos naquele período foi uma das razões que levaram à eclosão da Primavera Árabe, em 2011.

    No contexto do atual conflito, Argentina, Hungria e Sérvia já tomaram medidas para restringir as suas exportações no intuito de estabilizar internamente os preços de alimentos, o que sinaliza um movimento preocupante no sentido de um “nacionalismo alimentar”.

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    Os efeitos imediatos da queda nas exportações de produtos alimentares básicos serão sentidos, sobretudo, por países no mundo islâmico do Norte da África e do Oriente Médio, que mais dependem deles, como Egito, Líbano, Iêmen e Líbia.

    Como a história recente mostra, o Oriente Médio tem sido altamente vulnerável aos altos preços dos alimentos, cujo último ciclo de alta ocorreu a partir de 2008. Outros países que respondem por grandes volumes das importações de trigo russo e ucraniano são Turquia, Indonésia, Bangladesh, Nigéria e Marrocos. Em quase todos os casos, estamos falando de países populosos com baixa renda per capita (inferior a US$ 4.000 por ano).

    Os efeitos causados por crises alimentares são difíceis de mensurar, por acontecerem em velocidade reduzida e frequentemente sem muita atenção midiática. Não obstante, a proporção do seu impacto é substancial. Estimativas do Banco Mundial indicam que a crise alimentar de 2008 empurrou entre 130 milhões e 155 milhões de pessoas para a pobreza, condição associada à forte insegurança alimentar. A crise atual, provavelmente, terá um efeito ainda maior.

    A magnitude das implicações transversais da guerra, apesar da natureza diferente dos riscos e sofrimentos diretos, pode legitimamente ser estendida a todo o mundo e deve ser considerada com a máxima relevância. Os efeitos nefastos da fome, sobretudo nos países sujeitos à vulnerabilidade alimentar, permanecem ancoradas nas memórias coletivas e, consequentemente, pressionam governos do mundo inteiro a adotar medidas para limitar qualquer risco de uma nova crise alimentar.    

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    Niels Sondergaard e Amanda Araújo Pinto são pesquisadores do centro Insper Agro Global.
    Marcos Sawaya Jank é professor de agronegócio global do Insper e coordenador do Insper Agro Global.

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