Que a vida de bailarina não é fácil, já se sabe. Que o balé Bolshoi coleciona escândalos – que culminou com um ataque com ácido ao seu diretor em 2013 – também. Entender tanta tensão, no entanto, vai muito além do rigor caro à sua precisão técnica. O livro Bolshoi Confidencial, de Simon Morrison (Ed. Record, 490 págs, R$ 69,90), reconta os 250 anos de história da companhia, motivo de orgulho do império tsarista – mas de tormenta para seus dançarinos.
Morrison, professor de música na Universidade Princeton, destrincha a vida desses trabalhadores desde a época em que, apesar da imagem que remetia à nobreza, eram extremamente pobres e tiveram sua dignidade atentada de diversas formas. Não bastassem as condições miseráveis desde o império, depois, sob o regime soviético, a mesma claque contratada para ensinar camponeses a como apreciar um espetáculo de balé (do bater palmas ao gritar “bravo!”) se envolvia em jogos de intrigas, rivalidades entre prima ballerinas e era responsável por sabotagens bizarras.
Os maiores sofrimentos, contudo, eram reservados às jovens dançarinas aspirantes do corpo de baile, como detalha o autor. Sua vulnerabilidade social é chocante e muitas violências foram encobertas, mas um caso específico atingiu a elite da companhia: o da bailarina adolescente Avdotya Arshinina, vendida pelo pai ao príncipe Boris Cherkasski, largada diante da porta de um hospital com ‘acessos de loucura’ e ‘delírios constantes’ após ter sido violentada por diversos homens das altas rodas russas.
Sua história, e o silêncio perpetuado pelos protagonistas, é contada no trecho abaixo. A obra chega às livrarias na próxima segunda-feira (25).
“Sabe-se mais dos escândalos do que das glórias no palco de Moscou, porque eles geraram pilhas de documentos, e as glórias, ao menos naquela época, não inspiraram muito além de tributos poéticos, buquês de palavras: ‘Sankovskaya em La sylphide/ É tão meiga/ Deus perdoe os pecados/cometidos.’ Ela foi a figura mais radiante nas memórias do balé da época e, como demonstra o caso da desconhecida bailarina adolescente Avdotya Arshinina, os artistas famosos enfrentavam muito menos dificuldades e muito menos ameaças ao seu bem-estar do que os bailarinos que viviam na sombra, fosse na Rússia ou na Europa, fosse nos Estados Unidos. Arshinina certamente não possuía a capacidade de Sankovskaya e nunca teve a oportunidade de se tornar uma bailarina de primeira grandeza, mas os pecados cometidos contra ela colocam todas as histórias de tapas, maçãs, gatos mortos e as palhaçadas dos Sankovistï em um contexto terrível. Aqueles problemas afetavam a elite dos bailarinos.
Em 5 de janeiro de 1847, Arshinina foi largada diante da porta de um hospital com ‘acessos de loucura’ e ‘delírios constantes’. Pálida e emaciada,tinha feridas profundas na cabeça e no corpo, e a genitália coberta de hematomas, infeccionada e ‘escura’. O crime caiu na boca do povo’e durante anos foi tema de discussão nos círculos legais. Ele expôs uma economia abominável em que às bailarinas menos talentosas era prometido acesso aos círculos aristocráticos por meio da sua arte para fazer delas escravas sexuais. As propinas eram essenciais nesse negócio, e junto com elas as drogas, mascaradas e pequenas máscaras pretas.
O médico-chefe do hospital atestou a ‘perda da inocência’ e uma ‘condição severamente mórbida’. Cherkasski rechaçou a acusação de Arshinina de que ele a teria violentado em uma demonstração de ‘extrema paixão
O primeiro a ser preso pelo ataque foi o pai dela, um violinista medíocre no rol dos Teatros Imperiais de Moscou. A polícia informou que ele vivia em condições deploráveis com as três filhas jovens em um apartamento frio e úmido, incapaz de cuidar delas após a morte da esposa, sem dinheiro para alimentos ou roupas. Desesperado, ele ‘vendeu’ Arshinina, a filha mais velha, a um ‘mestre’, o príncipe Boris Cherkasski, por 10 mil rublos. Antes de assumir a posse formal da jovem, ele a cobriu de presentes: brincos esmaltados com diamantes, um bracelete de ouro, um mantô de pele de raposa com colarinho de zibelina, tecidos de seda, doces e mais de 2.175 rublos, que Arshinina pediu a uma irmã que guardasse para ela. O pai foi subornado com um casaco e uma caixa de rapé em prata. O ator que apresentou Arshinina ao príncipe foi pago, assim como os que compravam sedativos para o príncipe nas farmácias da rua Arbat.
Os acontecimentos que levaram ao crime foram desvendados nos interrogatórios policiais, que ocorriam a qualquer hora do dia ou da noite. O administrador do príncipe forneceu informações essenciais, e revelou que na noite do Ano-Novo de 1846 Cherkasski e Arshinina foram a uma mascarada no Bolshoi. Com a identidade ocultada por uma máscara, ela dançou e circulou pelo teatro nos braços de diversos nobres até meia-noite, quando foi devolvida a Cherkasski. Três dos homens que haviam circulado com Arshinina — um escrivão do colégio, um professor e um comerciante — se juntaram a ela e ao príncipe na casa deste último. Eles jantaram e tomaram vodca e champanhe. A taça entregue a Arshinina continha um sedativo. Ela foi estuprada pelo príncipe e, depois que ele dormiu, pelos outros três. Ela recobrou a consciência durante o ataque e conseguiu se safar. Correu para o pátio vestida apenas com uma camisa, mas foi pega e levada de volta. Na manhã seguinte, deixaram-na sangrando e inconsciente no apartamento do pai. Este e o médico do príncipe tentaram fazê-la se recuperar antes de levá-la ao hospital. As provas da violação que ela sofrera — as roupas e o frasco do sedativo — foram queimadas em um fogão. O frasco explodiu; o componente químico que continha tingiu as chamas de diversas cores.
O médico-chefe do hospital atestou a ‘perda da inocência’ e uma ‘condição severamente mórbida’. Cherkasski rechaçou a acusação de Arshinina de que ele a teria violentado em uma demonstração de ‘extrema paixão’ — embora, no leito do hospital, ela gritasse ‘Príncipe! Príncipe! O que está fazendo comigo! Não teme a Deus?’ e ‘Pai, por que me arruinaste?’. Antes de ser preso, o pai dela conseguiu (por intermédio de Verstovski) visitá-la no hospital, onde a ouviu gritar ‘Por que isso está acontecendo comigo?, entre outras queixas incompreensíveis. Ela morreu treze dias depois de ser internada.
O caso teve uma reviravolta bizarra quando ele acusou um interrogador de abuso de poder por puxar a sua barba, mas o médico-chefe atestou que os pelos faciais do príncipe estavam ‘perfeitamente íntegros’. Cherkasski também chamou atenção para a ‘magnitude’ de seu membro; o médico concluiu que não era tão grande como alardeava o dono.
Por temer mais a prisão do que a humilhação da condenação, Cherkasski tentou jogar a culpa na própria Arshinina. Primero atribuiu a inflamação em seu baixo-ventre à falta de higiene menstrual, depois a cavalgadas excessivas, e por fim, com menos convicção, à desidratação provocada pela dança. A sua ligação com a vítima era consensual, alegou, assim como suas ligações com outras bailarinas dos Teatros Imperiais. Ele as pagava não pelo favor do sexo, mas por lastimar a pobreza delas.
O caso teve uma reviravolta bizarra quando ele acusou um interrogador de abuso de poder por puxar a sua barba, mas o médico-chefe atestou que os pelos faciais do príncipe estavam ‘perfeitamente íntegros’. Cherkasski também chamou atenção para a ‘magnitude’ de seu membro; o médico concluiu que não era tão grande como alardeava o dono. O príncipe passou meses em custódia, mas, por fim, não foi condenado devido a discrepâncias triviais nos relatos das testemunhas oculares. O pai de Arshinina foi condenado a dois anos de prisão na Sibéria e foi banido de Moscou.
SANKOVSKAYA soube do crime, como todo mundo nos Teatros Imperiais de Moscou. O diretor anotou a data da morte de Arshinina em um informe enviado à corte em São Petersburgo, acrescentando que esperava que ela descansasse em paz. Porém, o crime ocorrera no mundo da subclasse dispensável, não na corte. Fyodor Dostoievski fez deste mundo o tema de seus romances, e vociferou contra as suas injustiças cósmicas e brutalidades banais. Sankovskaya e suas rivais escaparam delas, tanto no palco como fora dele.
Segundo uma meditação histórica publicada no penúltimo ano do poder soviético, o mundo dela era um no qual ‘atores, cantores, bailarinos, o corpo docente, os estudantes e os literatos pareciam uma família unida de uma linhagem distante — que preservou, antes que começasse a definhar, a psicologia nativa antiquada da capital secular da Rússia’. O sentimento é atraente, e torna a era romântica russa menos solitária para os grandes artistas da elite do que a era romântica na França e na Alemanha. Mas ele não compensa a falta de dados sobre os feitos de Sankovskaya, o fato de que a maior parte dos registros da sua carreira se incendiou. As críticas são inspiradas, mas sem substância, sem especificidade. Não há informações sobre o que faziam os pais dela, se ela se casou, sobre suas apresentações no estrangeiro, seu regime de aprendizagem e treinamento, e o que fazia nos momentos de ócio. Talvez a falta de detalhes do cotidiano se justifique. Talvez se saiba pouco sobre a sua existência porque na verdade haja pouco para se saber, pois a sua vida e a sua arte foram uma coisa só.
Só restaram duas cartas: a primeira com um conteúdo banal — congratulações e alvíssaras no dia do seu onomástico — e a segunda mais significativa. Ambas foram escritas, em prosa e cursiva elegantes, no final de sua vida, quando, com a irmã Alexandra, também aposentada dos palcos, ela vivia na casa que compraram na cidade de Vsekhsvyatskoye, que agora faz parte do centro-norte de Moscou. Sankovskaya enviou as cartas por meio de um cocheiro à bailarina Mariya Manokhina, filha de uma das suas parceiras de palco, à época da estreia da Manokhina no balé Satanilla, no Bolshoi. A segunda carta, substancial, que contém uma lição extremamente precisa de pantomima, dá uma ideia de como Sankovskaya percebia a sua arte e como as coisas haviam mudado desde os tempos de seus maiores triunfos.
Na medida em que, de algum modo, a maior parte dos balés tende a ser sobre o balé, Satanilla pode ser considerado uma parábola sobre as barganhas com o diabo e os sacrifícios que os bailarinos precisam fazer.
Satanilla é de 1840. Foi coreografado em Paris por Joseph Mazilier antes de ser revivido por Marius Petipa e o pai dele, Jean-Antoine Petipa. A música era de dois franceses, Napoleón Henri Reber e François Benoist, revisitada por um regente russo, Alexander Lyadov. Sankovskaya dançou esse balé no Bolshoi, em uma versão de 1848, e se recordava do papel com detalhes suficientes para ajudar Manokhina nos momentos essenciais da trama, uma história de amor, inferno e almas comprometidas. Belzebu manda uma fada, Satanilla, destruir um conde em seu velho castelo assombrado, mas ela se apaixona pelo conde. Ela queima o laço que condenava a alma dele à danação, embora ele nunca retribua seu amor, pois seu coração pertence a uma mortal, com quem Satanilla, em um ato de abnegação, permite que se case. Em troca do sacrifício, ela obtém a bênção do céu e se liberta dos poderes da escuridão.
Sankovskaya insiste para que Manokhina atente para a sua intuição, que não amasse a túnica carmesim por acidente nem pisasse antes da hora no alçapão que a levará ao inferno. Isso poria tudo a perder. Se não houver ensaio final, Manokhina deve ao menos repetir a sua parte nos bastidores com o parceiro, Dmitri Kuznetsov. No último ensaio a que assistira, Sankovskaya havia reparado que ele e outros bailarinos não conheciam a música e dançavam rápido demais. Como Manokhina tinha o papel principal, seria apontada como culpada se a ação terminasse mais cedo do que o previsto. Quanto à cena em que ela queima o laço, e o sofrimento de Satanilla ao entender que o conde ama outra, ela foi meticulosa:
‘Comece a chorar ao ouvir a entrada, e não antes, e após quatro compassos solte as mãos dele. Acenda o papel na segunda vez sem dar as costas para a mesa. Vire a cabeça para Kuznetsov. Atire o papel no tremolo. Aponte para ele na entrada e diga que vai morrer, mas faça-o silenciosamente, debilmente. Ontem o papel queimou bem. Se a queima for demasiadamente lenta em sua mão, atire-o no chão; se queimar muito rapidamente, alce-o.’
No início da carta, Sankovskaya diz a Manokhina que se sentia fraca demais para tomar um coche até o Bolshoi para assistir à apresentação e, devido à sua condição física, já não podia demonstrar os passos de Satanilla tal e como os recordava. Passou a tocha a Manokhina do mesmo modo que, em 1836, Félicité Hullen havia feito com ela — de um modo profissional, desapaixonado. ‘Não sei se entenderá o que escrevi, mas tente se lembrar de que você não se apresentará como uma estudante; tenha mais confiança em si mesma e, principalmente, ouça a sua música e tudo ficará bem. Os bailarinos são todos muito bons, mas não se decepcione se não forem o que você espera. Sugiro-lhe parabenizar Gerber no final, pois ele seguirá sendo o regente, embora não seja muito bom. Que Deus esteja com você.’
Na medida em que, de algum modo, a maior parte dos balés tende a ser sobre o balé, Satanilla pode ser considerado uma parábola sobre as barganhas com o diabo e os sacrifícios que os bailarinos precisam fazer. Para ter êxito na arte, Sankovskaya advertiu Manokhina de que ela precisava ‘se esquecer de tudo’, perder-se na descrição de uma personagem que deseja escapar dos laços do submundo e ascender à luz com a ajuda do grampo nas costas de seu corpete.”